A princesa do Agreste
Era de uma delicadeza, maneiras finas, que nem a pobreza nem as desilusões, preconceitos e desprezos tiveram poder de fazer esmaecer. Negra formosa, porte de princesa, voz rouca, falava devagar; arrastava as palavras como se assim pudesse acariciar o ouvinte. Transmitia calma; por onde passava chamava a atenção pela capacidade de não querer aparecer; quando justamente os outros se esforçavam para fazer o contrário.
Tinha o dom de lidar com criança. Já tinha ensinado por vários anos. Mas por não ter o Magistério não pudera ficar no quadro docente; como era efetiva, colocaram-na para ser servente. Socorro continuou com o mesmo desvelo de antes. Porém por onde passava as crianças, adolescentes e até adultos a cumprimentavam com respeito, no que ela correspondia com aquele olhar tão especial.
Seu olhar era sincero, e seus ouvidos atentos. Tudo nela chamava para uma conversa amiga; era afável e dedicada; diante das dificuldades não recuava, tudo sacrificava em prol da família e em prol dos desfavorecidos. Santa? Rejeitaria esse título.
Maria do Socorro esse era seu nome. Chamou-me a atenção desde a primeira vez que fui morar naquela cidade. Tinha três filhas. A mais velha era fruto de um amor que não deu certo. Casou com um matuto que se dizia técnico em eletrônica. Com esse esposo teve as duas outras filhas. Todas tinham o mesmo jeito da mãe, porém ainda em fase de botão.
Mulher sábia, dona de casa exemplar, filha dedicada. Quando qualquer pessoa da família adoecia, aceitava o encargo de cuidar até que o doente sarasse. Nunca se queixava. Nunca se irritava. Quando repreendida e não compreendida nas suas petições ou explicações, abaixava a cabeça, e, com humildade respondia:
_Desculpe-me, esqueça o que falei.
Sua mãe já velhinha, já passara dos cem anos. Socorro, ia à casa de sua mãe, todos os dias.Queria saber como ela estava e se precisava de algo.Sua mãe estava na fase de brincar de boneca.Mas com a mesma paciência que cuidava das filhas, agia assim com a mãe.
Socorro adoeceu quando eu ainda residia naquela cidade. Fui visitá-la quando voltou do hospital; Vi que não havia nenhum adulto para cuidar dela e me ofereci para levá-la para minha casa,e, expliquei que não poderia ficar dividida cuidando de duas casas porque meu filho era novinho. Ela sorriu com aquele jeito lindo, agradeceu e disse:
_A senhora é que precisa de ajuda. Não se preocupe que as minhas meninas e o meu esposo irão cuidar de mim. Eu sabia que ele só chegaria à noite...
Não quis insistir. Mas voltei várias vezes, e ela se esforçava para aparentar que estava bem. Pensei que todo aquele processo dolorido era causado pela cirurgia muito recente. Não era.
Voltou a trabalhar, porém demonstrava cansaço; seu andar já não era o mesmo. A cor bela, de uma pele que brilhava foi ficando cinzenta e opaca. Voltou várias vezes ao médico, e, esse dizia que ela estava boa, que o resultado do exame tinha sido negativo.
_A senhora não tem nada, dona Socorro. Está como se fosse uma menina!
Mas ela sabia que nada estava bem. Nos nossos momentos de conversa, cheguei a lhe perguntar como estava ela sempre me respondia:
_Vou bem.
Imediatamente levava o assunto para a minha pessoa. Preocupava-se com a minha saúde.
Chegou o tempo de nos separarmos. Pela manhã, com minha mudança dentro do caminhão, ela chegou. Com os olhos marejados me deu um abraço de amiga, aquele abraço que faz a diferença, e afastando-se, olhou bem dentro dos meus olhos e me disse:
_A senhora sabe o quanto gosto da senhora? Eu disse pra minhas meninas: minha amiga vai embora, e eu não posso deixar de ir lá para dar-lhe um abraço.
Fiquei emocionada. Olhamos-nos mais uma vez, com os olhos cheios de lágrimas nos despedimos. Já estava na hora de fechar a casa. Ela tinha pressa, precisava cuidar das filhas, e depois desceria outra vez para ir trabalhar.
Os anos passaram.Voltei umas três vezes naquela cidade, mas nunca nos encontramos.Quase cinco anos depois, recebo a notícia:
_Socorro está internada. O estado dela é gravíssimo e os médicos já a desenganaram.
Insisti com a pessoa que me dava aquela notícia por telefone,pois não podia acreditar. Pedi que essa pessoa conseguisse o número do celular da filha mais velha de Socorro, pois eu queria ir visitá-la e lhe dar um abraço gostoso. Não tive retorno. A pessoa esqueceu e eu fui negligente.
Dois dias antes da sua partida recebeu alta. Voltou mais forte. Todos estavam esperançosos. Até uma das suas filhas que trabalha na área de saúde acreditou no desejo do seu coração, que era ver a sua mãe boa.
Tive um sonho. Eu ia até aquela cidade, e sentada a uma mesa, aguardava o momento certo para ir à procura de Socorro. De repente, suas filhas apareciam, todas bem vestidas, e aparentavam ter mais idade do que têm hoje. Logo atrás vinha Socorro. Abraçava e beijava um a um que estava à mesa, e quando chegava diante de mim, me olhava com aquele olhar que eu conhecia, estava mais bela, mais alta; um lindo sorriso no rosto. Com muita dúvida, perguntei:
_Socorro? É você mesmo?
Ela balançou a cabeça, me deu um beijo na testa e um abraço. Acordei. Chamei meu esposo e lhe disse:
_Acabei de me despedir de Socorro. Minha amiga vai embora.
Ele gentilmente me respondeu:
_Filha, pode ser uma despedida, ou então Deus vai curá-la. Volte a dormir.
Algo dentro de mim dizia que não.
Quinze dias depois, o telefone toca, e a confirmação vem aos meus ouvidos:
_Sabe quem morreu?
_Não. Quem foi?
_Socorro. Ela teve alta, voltou parecendo estar bem, mas na quinta-feira passou mal, e quando foi socorrida, morreu a caminho do hospital.
Pensei:Foi justamente no dia que sonhei!
_Quando vai ser o enterro?
A pessoa me respondeu:
_Já foi há quinze dias atrás.
Ali mesmo chorei. Não pude realizar o desejo do meu coração que era abraçá-la e dizer-lhe o quanto me fez bem. Mas Deus, que realiza desejos e nos conhece nos mínimos detalhes me deu o aviso de que a princesa do agreste seria recolhida para o Seu celeiro.