AOS DIAMANTES BRUTOS
Ouve-se falar fartamente dos luminares da literatura; daqueles que foram buscar nas escolas, nas universidades, nas bibliotecas, no recesso dos seus escritórios, nas madrugadas debruçados sobre os livros o alimento, o combustível, o néctar para a vitalidade dos seus dons, dos seus talentos.
Fala-se na Bahia de Ruy Barbosa – a águia de Aia – aquele cujo sol nunca o pegara na cama; fala-se de Castro Alves – o maior poeta da Bahia de todos os tempos – aquele que tão jovem já sabia que o livro é a fonte que irriga o pensamento: “Livros, livros a macheia? E manda o povo pensar/ O livro caindo nalma? É o germe que faz a palma/ E chuva que faz o mar”. Fala-se de Ernesto Carneiro Ribeiro e a sua réplica; fala-se em poetas e escritores de todo o Brasil e de todos os tempos: Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, Cassimiro de Abreu, José de Alencar, Olavo Bilac, Vivente de Carvalho, Júlio Ribeiro, Monteiro Lobato, Cruz e Souza, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Arthur de Salles, Nestor Oliveira, Caetano Veloso, etc., etc., entretanto fala-se pouco, muito pouco da pedra bruta, do diamante que não foi lapidado, da inteligência, que apesar da crosta da ignorância que lhe envolve, deixa cintilar as fagulhas de um quilate de primeira grandeza.
Eu me refiro aqui àqueles que nada escreveram, porque não sabiam escrever, que não assinaram os seus trabalhos porque não sabiam assinar, mas que apesar de tudo deixaram luzir a fulgurância de seus talentos:
Oralistas, poetas repentistas, cantadores de viola que, por onde passavam deixavam um rastro de luz nas frases, nos versos, nos repentes que ao sopro do tempo se apagaram, ficando resquícios aqui e acolá graças à memória de alguns encantados com a beleza do que ouviam.
Eu vou contar algumas poucas histórias, inventadas ou reinventadas, sem brilho, para focalizar a fulgurância do talento daqueles poetas anônimos nos seus versos encantadores:
Certa vez um grupo discutia – jogando conversa fora – sobre o nascimento de Jesus e a virgindade de Maria; entre eles estava um repentista, que apenas ouvia, talvez temeroso de entrar na discussão, por ser o menos letrado do grupo. Uns achavam que Maria foi virgem durante toda sua vida e outros, baseados no que leram nas escrituras, achavam que Maria foi virgem até que conheceu a José, o seu marido. Um deles, mais cético, pondo em dúvida a virgindade de Maria depois do parto,achando impossível que tal coisa pudesse acontecer, virou-se para o repentista, até então calado e lhe perguntou: você que tem sempre um bom repente como pode me explicar tal absurdo? Ao que o repentista, futucado na sua verve e na sua fé, lhe respondera:
Do seio da Virgem Mãe,
Nasceu a divina Graça,
Entrou e saiu por ele
Como o sol pela vidraça.
E foi encerrada a discussão.
Deixem-me contar outra história: morava num lugarejo chamado Laranjeiras, do município chamado Santo Amargo, num estado qualquer deste Brasil lindo, um cantador de viola chamado Zé Toquinho.
Zé Toquinho era um homem de pouquíssimas letras, homem afeito ao trabalho árduo do campo, lavrando e semeando a terra para o seu sustento. Mas aquele lavrador era também um poeta, um repentista primoroso; tinha o verso na ponta da língua. Dir-se-ia que os seus repentes eram como olhos d’água, tal a espontaneidade com que brotavam de sua verve.
Nascido e criado sob a fé católica, ele se confessava um religioso praticante, tendo como santa principal da sua devoção a Padroeira local – Nossa Senhora das Laranjeiras.
Alimentava a sua fé, a amizade estreita que mantinha com o vigário da freguesia - Padre Hermilino. Ele cultivava o hábito de visitar o reverendo – que amava os seus versos e os seus repentes – para conversar e também fortificar a sua fé.
Certo dia, numa dessas visitas costumeiras, o vigário havia saído para uma diligência religiosa. Ele, hesitante entre voltar para casa ou aguardar a chegada do padre, íntimo que era dos familiares, resolvera ficar, apossando-se de um breviário que encontrara sobre a mesa e postando-se à porta da rua, entreteve-se folheando-o.
Aquela região era pródiga de repentistas e cantadores de viola e a fama de Zé Toquinho corria os quatro cantos da região e abalava os seus alicerces: era sem dúvidas o melhor trovador da redondeza. Por isso mesmo, todos desejavam derrubá-lo num repente, numa glosa, num mote.
Passava, coincidentemente, um outro repentista que o reconhecera entretido com a leitura do breviário – e pensou com os seus botões: – ” É chegada a hora de derrubar o gigante”. Aproximara-se com a cautela de quem respeita o adversário, mas confiante no veneno que colocara no seu mote:
– Bom dia!
– Bom dia! - Respondera-lhe Zé Toquinho.
– O senhor é Zé Toquinho?
– Sim, seu criado.
– O cantador de viola?
– Sim, senhor – eu faço as minhas rimas.
– Ouvi dizer que o senhor é muito católico, é verdade?
– Sou católico praticante e devoto de Nossa Senhora.
– Eu tenho um mote aqui na cabeça, gostaria de ouvir a sua glosa, posso mandar?
– Mande lá, se não for muito difícil...
“ESCOREI NOSSA SENHORA
COM UM BACAMARTE NA MÃO”
Sem pestanejar, com a rapidez de um raio, Zé Toquinho captou a maldade e saiu-se com essa brilhante glosa:
– “Sem o querer, muito embora,
Estava lendo um breviário,
Vi tombar um santuário!
ESCOREI NOSSA SENHORA.
Contra a Virgem nessa hora,
Travou-se grande questão...
Transformei-me num leão!
E à falta do padre-cura,
Defendi a Virgem Pura
COM UM BACAMARTE NA MÃO”.
O tiro saiu pela culatra.
Outra história ou estória aconteceu no século passado e o cenário foi o massapê preto dos verdes canaviais – Santo Amaro da Purificação – terra fecunda que tem gerado inteligências privilegiadas.
O que há de mais bonito nesta narrativa, não são as personagens, nem é mesmo o próprio fato que gerou, nada mais nada menos, que uma trivial história de amor, mas é a fulgurância de um glosador: homem rude, um lavrador, quase um escravo.
Naquela época os senhores de engenho eram homens poderosos, eram verdadeiros Senhores Feudais dentro de suas ricas propriedades; e o Cel. Brito de Almeida era um desses senhores no Recôncavo da Bahia: prepotente, arrogante, tinha uma esposa bonita e vaidosa e três filhos – dois homens e uma mulher, linda donzela, que era sem dúvidas, a flor mais viçosa da redondeza. Chamava-se Teresa.
Dentro da propriedade, obviamente com o assentimento do Senhor do Engenho, exercia a profissão de pequeno comerciante (dono de uma vendola), um jovem: pouco mais de 20 anos, belo, forte, figura simpática aos olhos de qualquer rapariga, o nome dele era João. E aí começa a história. João e Teresa se apaixonam – um amor impossível, um amor terminantemente proibido.
No entanto, porque o amor tem forças para transpor obstáculos, os mais ásperos, João e Teresa começaram a se encontrar furtivamente; e esse amor foi crescendo... crescendo... até que Teresa no ápice de seu carinho entregou-se completamente a João. E aí termina a
história porque João fugiu.
João seria assassinado se permanecesse na propriedade. Ele tinha consciência disso. Precisava fugir. Largar tudo e fugir. Mas João era um poeta e era um romântico e queria guardar uma recordação daquele grande romance de amor.
Num pedaço de papel qualquer escreveu quatro versos:
“TEM NESTA TERRA UMA FRUTA
O NOME DELA EU NÃO DIGO
A FRUTA FICA NA RAMA
O GOSTO EU LEVO COMIGO.”
Escreveu e guardou. Guardou e aguardou a passagem
habitual de Zeca – O Cantador – cuja inteligência é o que há de mais lindo desta história: poeta, repentista, um cantador de viola, para quem João declamou o mote, e de quem ouviu, absorto, boquiaberto, babando mesmo, a seguinte glosa:
“Achei na horta florida
Uma uva no seu cacho
Uma fruta das que eu caço
Em sua rama escondida.
Mas deixo desconhecida
Porque ninguém me consulta
Nem sabe em que se resulta
Me vendo adorar o pé;
Mais doce do que o mé
TEM NESTA TERRA UMA FRUTA.
Não é verde, nem madura
Pouco mais do que pepino
Até nem eu imagino
Qual é a sua estatura.
Não é passa, não é figo
É um fruto proibido
Que ninguém deve saber
E é esta a razão porque
O NOME DELA EU NÃO DIGO.
Mas se pudesse arrancar
O pé com raiz inteira
Plantava na jardineira
Onde eu só pudesse entrar.
Como não posso mudar
Do lugar que foi nascido
Deixo tudo reunido:
Raiz, rama, fruta e pé
Porém o doce do mé
O GOSTO EU LEVO COMIGO.”
A glosa do terceiro verso se perdeu no tempo. (Lastimável).
E quantas histórias dos nossos poetas anônimos existem por ai, lastimavelmente desconhecidas, esquecidas, ou perdidas. Que bom se as pudéssemos resgatar.