A força da mulher
Tenho poucas, mas tenho deliciosas lembranças de minha infância, se for precisar a idade que me lembro eu diria que dos 8 anos pra cá.
Lembro-medos almoços de domingo na casa de vovó Lucinda, da cara séria de vovô Castro sentado à mesa, esperando ser servido primeiro que todos, vovó Lucinda, nervosa porque sempre faltava um tio na mesa, o tio Éca ( Helcio era o nome dele) o meu tio mais querido, ele sempre chegava atrasado, e quando chegava...chegava embriagado, não esperava vovó servir vovô primeiro, ele simplismente sentava-se à mesa de mais de três metros ladeada por um banco comprido de madeira e comia com voracidade. Os seus quase duzentos quilos eram o grande entrave para alguém tentar dizer a ele que estava errado. Tio Éca era enorme e eu e meu primo Paulo Roberto tínhamos a sua proteção incondicional. Ele nos defendia. Me chamava de POJOCO e Paulo de PASSARINHO. Eu e Paulo sempre que queríamos alguma coisa que nossos pais não nos dava... recorríamos ao Tio Éca, ele sempre dava.
Sentado à mesa , Tio Éca simplismente ignorava o desespero de vovó Lucinda, e o olhar fulminante de vovô Castro. Ele comia sem modos algum e ainda piscava o olho sorrateiramente pra mim.
Tio Éca quando bebia ficava violento. Teve um dia que ele me confessou que nem sempre chegava bêbado, as vezes só bochechava com álcool na esquina de casa e vinha cambaleando pra agredir vovô, isso era sinal que ele tinha visto vovô com a Paraguaia, uma mulher que vovô mantinha fora do casamento e que fazia vovó Lucinda sofrer muito.
Lembro-me de vovó Lucinda sempre com vestido de três cores, um colorido mais forte no ombro , o desbotado quase branco na barriga e o borrado na altura dos quadris. Ela vivia no tanque e no fogão de lenha. Lavava com QUIBOA e depois ia limpar o fogão (daí as manchas de carvão que não saiam mais de seus quadris era ali que ela limpava as mãos quando estava no fogão).
Um dia, encontrei tia Tide ( uma negra maravilhosa que ajudava tia Marilia a cuidar de seus filhos ) correndo na rua. Ela ia no cartório de vovô pedir ajuda,( o cartório ficava a uma quadra e meia da casa de vovó Lucinda) tio Éca chegou bêbado e estava quebrando tudo na casa, vovó não estava dando conta de segurar ele. Corri como uma louca pra chegar antes que vovô Castro , eu sabia que se vovô chegasse primeiro, ia sair morte na família. Quando entrei na casa vovó estava agachada feito uma criança medrosa , encolhida atras da porta que se abria no meio e que dividia o quarto dela e a sala, ao lado da penteadeira e tio Éca enfurecido gritava, VOCÊ TEM QUE REAGIR, e levantou a mão pra vovó. Não sei o que me deu naquele momento, saltei como uma leoa na frente dele gritando__ SE VOCÊ BATER NELA EU MATO VOCÊ.
A mão de tio Éca ficou parada no ar, ela balançava feito um boneco bambo na minha frente, seus olhos se encheram de lagrimas que correram abundantes por trás do óculos “fundo de garrafa de champanhe” _ POJOCO , ELA É MINHA MÃE, EU NÃO VOU BATER NA MINHA MAE.
Vovó se agigantou de repente e saiu do encolhimento e pôs-se à minha frente tomando minha defesa. NÃO TOCA NELA, SAI DAQUI. E foi empurrando tio Éca pra fora que saiu gritando POJOCO NÃO FICA BRAVA COMIGO, VOCÊ É MINHA PRINCESA, PASSARINHO É MEU PRINCIPE.
Nunca consegui esquecer aquela cena. Eu não entendia porque ele dizia que vovó tinha que reagir, mais tarde entendi,,, reagir contra a bigamia de vovô. Naquela manhã ele soube que vovô comprou um fogão a gas para a paraguaia, e vovó lidava com um fogão a lenha, que ela tinha que se levantar de madrugada pra rachar as toras e preparar o café. Ele estava, do modo dele defendendo a sua mãe, e não estava ameaçando bater nela.
Logo em seguida, chegaram Tio Costa, Papai e Mamãe, que toda chorosa foi ter com vovó que de joelhos no quarto de madeira que ficava no quintal, rezava pra menino Jesus de Praga., eu estava sentada no batente da escada de 4 degraus que ia para o quintal chupando tarumã enquanto vovó rezava soluçando. Percebi que mamãe falava alguma coisa pra vovó Lucinda, e vi suas lágrimas secarem em segundos, seu rosto de vermelho tornar-se esbranquiçado, seus lábios crisparem suas mãos se fecharem com força e sem dizer uma única palavra, vovó levantou-se, caminhou até seu quarto e abriu o gruada-roupa, tirou do cabide o XALE PRETO ,ah... nós sabíamos que quando ela pegava aquele xale...... o mundo vinha abaixo. Colocou nos ombros e saiu de casa, Tio Costa chamava para que ela entrasse no carro, mas ela não ouvia, não via ninguém, sem mexer um músculo do rosto vovó que tinha uma ferida enorme na perna que dificultava sua caminhada, andou em passos largos, decidida, eu fui seguindo na calçada do outro lado da rua, ( afinal ela estava com o xale e eu não iria me arriscar), quando parou na porta do cartório, vovô levantou a cabeça e quando percebeu que ela estava com o xale ficou imediatamente em pé. SAIAM TODOS . ___ foi a frase que ouvi de vovó. Tio Carlinhos, funcionários e pessoas diversas que estavam no cartório saíram sem dizer nada, vovó fechou a porta e ficou não mais do que três minutos que nos pareceram três séculos com vovô lá dentro, Depois saiu e tomou a direção da cadeia da cidade que ficava em frente a casa do artesão. Vovô saiu correndo de dentro do cartório, mamãe desceu do carro e veio a pé comigo e papai , tio Costa e vovô foram de carro pra chegar primeiro que vovó na cadeia ... e apesar dos passos largos que ela conseguia dar e que eu e mamãe acompanhávamos quase correndo...eles chegaram primeiro que ela.
Vovó foi entrando porta adentro na cadeia, deparou com vovô e o delegado na sala, e da porta disse uma única frase. VIM BUSCAR MEU FILHO e saiu de lá com tio Eca cambaleando contando pra ela que ele não tinha feito nada demais, apenas tinha quebrado um fogão novo com machadadas, e ria.... Eu imagino o susto da paraguaia. Hoje eu daria 10 anos de minha vida pra saber o que vovó Lucinda falou pra vovô Castro naqueles três minutos. Em que gigante se transformou aquela mulher!