Lembranças de meu pai, um homem distinto.
Lembraças de meu pai, um homem distinto.
De meu pai tenho na memória, sua figura risonha, inteira e sua gargalhada gostosa,que sacudia sua barriga, onde minha gata Samanta gostava de tirar uma soneca e ele amavelmente atendia.
Tenho bem gravado, seu modo de pigarraer, seu cheiro de fumo e "Loção Borbon", que brilhava em seu cabelo prateado,e o barulho tão esperado de seu chaveiro,ao se aproximar da porta.
Herdei dele o gênio intempestivo, estourado e essa mania de se envolver e se emocionar( que coisa, pai!), tanta coisa para herdar...E logo isso.Sabe, isso me dá um certo trabalho...
Mas a vantagem de ser assim é que esquecemos logo, e sabemos deixar na lembrança dos que amamos o que de fato somos, sem rodeios.
Do meu pai lembro bem vivo os olhinhos apertados quando ria, que reconheço em um dos meus filhos;
sinto ainda o balanço do ninar ao som de "Maria Santíssima", e vejo bem seu olhar impaciente, na noite de natal, espreitando-me, para ver se eu já havia adormecido, para enfim colocar meus presentes junto a cama.
Fico maravilhada até hoje, ao lembrar de seu talento desperdiçado, para desenhar e fazer grandes contas de cabeça, sem nunca errar!
Ainda estou encantada com a lembrança mágica, de sua atenção, ao me levar a primeira vez ao teatro, me senti aos 8 anos, tão importante naquela cadeira numerada, nós dois e a Bibi Ferreira, rs...
Vejo tão nítidamente, sua subida de joelhos pela escadaria da Penha, suas preces a Aparecida,
tanto quanto está nítido, aos meus olhos a fila imensa no corredor do hospital, com as visitas aguardando para vê-lo, e o reboliço que isso causava na enfermagem, era muita gente! E eu orgulhosa corria meus olhos por aquela fila e desejava que pudesse um dia ter tantos amigos e ser tão querida, a ponto de fazerem um esquema especial para essas visitas.
Lembro e escuto suas conversas com meu avô, após o almoço nas tardes de domingo, e não posso esquecer sua disfarçada vigilância nas noites de meus namoros.
De meu pai lembro muito, as rodadas de buraco, com a família, e as brigas por causa da contagem de pontos.
Como lembro bem, do cheiro de caipiranha antes do almoço, e as conversas sobre MPB, sentados , nós dois, no chão, escutando música na "vitrola" portátil, e ele me contando porque Noel Rosa fez tal música e porque Martinho da Vila é genial.
Lembro de nossas tardes no Maraca, torcendo pelo o Vasco, e lembro também de nossas brigas por causa da minha Mangueira e da sua Portela.
Vejo seu semblante emocionado escutando Clara Nunes e Belchior.
Pai , não esqueço nem do que não ví, as suas fugidas do colégio interno, das suas dormidas no jardim, das surras de cinto que levou e de dos carnavais de "baiana".
E sinto em mim e em meus dois filhos, seu carácter firme, sua determinação em ser um homem distinto, essa palavra que lhe descreve tão bem, expressão hoje tão pouco usada, por nova moda ou por falta de correspondente. Logo ele que tinha tudo para dar errado e deu tão certo...
Sua emoção tão honesta ao falar de política e seu orgulho de ser carioca e brasileiro. Ai de quem falasse mal do Rio de Janeiro e do Brasil perto dele.
Pai não gosto de lembrar , é de seu desejo careta, não atendido, de não morrer antes de me levar ao altar, de presenciar minha formatura e conhecer os netos .
Coisa que não aconteceu...O Chefe lhe chamou antes.
Para quem conviveu com ele, ele era o contrasenso entre um gênio terrível e um imenso coração.
A certeza da amizade fiel e do bom papo.
Ele não foi famoso, nem rico, mas foi um importante cidadão anônimo que deixou muitas saudades quando se foi.
Mas o que mais importa é que ele cumpriu seu papel maior, o de pai, pois em minha lembrança, ficou principalmente o que todo filho tem que lembrar do pai, amor.
E a minha lembrança de quem ele foi:
Um homem distinto.
Augusta Melo
Rio de Janeiro.
Para: Ivan (In memoriam)