O rocker e a bailarina

" O amigo é um momento de eternidade" -Nelson Rodrigues

Havia muito tempo que ninguém revirava as tralhas daquele velho e empoeirado sótão em Memphis.Estavam lá lembranças de infâncias, objetos de decoração que um dia foram a expressão do estilo da época, álbuns de fotografias, brinquedos de madeira, enciclopédias, discos de vinil, papéis, caixas, gaiolas vazias, baús, enfim, uma série de objetos incontáveis.Muita coisa cheirando a naftalina e outras tantas a mofo.
Will, que nascera naquela casa, quando mais jovem, temia a sobriedade daquele depósito.Faltava-lhe vida, é como se tudo o que havia ali, esquecido e carcomido pela ação do tempo, estivesse morto. Subir ao sótão, para ele, não era avivar as reminiscências, era juntar-se ao limbo. Por isso sempre evitou o espaço tanto quanto pôde.
Contudo, agora rapazinho, buscava respostas a sua jovem existência: tímido, recusava os convites da meninada para o futebol. “Se ainda fosse vôlei”, pensava.Preferia assistir aos seriados na tevê, ouvir música em seu pequenino quarto. Quantas vezes não pensou que havia nascido na época errada? Centenas.
Quem sabe as respostas para seus anseios não estivessem ali, guardadas entre tantas caixas cobertas de pó?
Subiu ao sótão numa tarde de outono, sem avisar a mãe de seu destino.Caminhando em seu museu familiar, o rapazola apanhava a esmo objetos a os soltava no assoalho, depois de rápida investigação . Alguns estavam quebrados; outros, nem sabia para que serviam.Nada passava despercebido aos seus olhos de catorze anos, completados no último dia vinte e oito.
Abriu um baú e após descartar o conteúdo de algumas embalagens, encontrou uma caixinha de música.Deu corda. Num instante a bailarina começou a rodopiar em seu palco de acrílico. Will amontoou uma pilha de livros grossos e sentou-se para ver com mais calma o espetáculo da mocinha de corpo esguio. Inebriado pela melodiosa canção, sua imaginação bailava junto com ela, que coreografava seus passos harmoniosamente: pliés, demi-pliés, piruetas...desobedecendo os limites de seu tablado.O porte elegante, os movimentos suaves, a indumentária e o cabelo encantaram Will. Despertou do transe com o fim da melodia.Segurou o pequeno instrumento musical com as duas mãos para ler o nome gravado no fundo dele: Tiffany.
Pôs com todo o cuidado a caixinha de música em seu “assento de literário” e continuou sua peregrinação pelo sótão acinzentado de poeira.Entre vasos, tapetes e lembranças de viagem, notou os elepês na prateleira bagunçada.Puxou um disco e vinil.Espirrou curto. Limpou suas digitais marcadas na calça de brim. De posse do disco, observou a foto da capa vincada e amarelada: um rapaz moreno, trajando jeans e jaqueta de couro, dono de um topete discreto, tem um cigarro no canto direito da boca. Lê: “Tatah Rocker – o micróbio do rock me pegou”.Vai puxando de dentro da capa aquela hóstia negra, brilhante e cheia me marcações.Pareceu-lhe que o tempo não havia danificado o material.
Procurou em meio aos cacarecos de campanha política, ferramentas e abajures uma vitrola.
Arrastou o móvel castanho escuro com exagerado cuidado até a tomada. Ligou-a. Abriu a tampa e depositou carinhosamente o bolachão negro no prato do aparelho, conduzindo o braço da vitrola, até disco e agulha se tocarem ternamente como num beijo apaixonado, que provocou um breve ruído...seria "smack"?
Uma música tomou conta do ambiente sem cor. A voz de Tatah era doce, envolvente, viciante...mágica! Havia um coro de rapazes, com vozes, igualmente belíssimas cantando.
Polegar e dedo médio se esfregavam pra produzir um estalo, acompanhando o ritmo de “Long Tall Girl”.Seus pés batiam no assoalho.Estava dançando, improvisando passos que jamais havia feito. Como estava feliz! Sua busca havia encerrado:
-Estou boladão de amor! – gritou.
O sol, desaparecido há dias, assim como a música, iluminou o sótão, enchendo-o de um amarelo bonito.
Will estava tão entregue às notas musicais que entranhavam seus poros, que nem percebeu , misteriosamente, a bailarina também dançar.Mas não em francês: ela estava rockando, rockando, rockando.Afinal, ela era, definitivamente, uma “long tall girl”. O micróbio do rock também a havia pegado.

(Maria Fernandes Shu – 30 de dezembro de 2008)


* Ao meu amigo querido, A"will"ton, digo, Ailton, mais conhecido como Tatah Rocker, o meu carinho.
Desejo a você e a sua linda bailarina, muito amor, sexo e rock and roll!



*"Por quantos sótãos temos de passar até encontrarmos a sintonia da dança da vida? " - Wilson Correia ( by Recanto das Letras)



Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 30/12/2008
Reeditado em 31/12/2008
Código do texto: T1359977
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