ADEUS AMIGO!
Hoje recebi a notícia de que um amigo morreu há dois dias apenas, mas não pude me despedir dele. Foi sepultado muito distante de aqui, no Interior do Estado, numa cidadezinha nos cafundós do brejo. Mas não é por isto que não fui ao seu sepultamento. É que somente o soube hoje, um dia depois.
Há muito tempo tive notícia de que ele estava com câncer em alguma região do intestino. Foi um de nossos amigos em comum quem me falou. Muito me entristeci por isto, mas não fui visitá-lo, apenas comentei com o amigo emissário que é nisto que resulta o trabalhar demais, sem tirar um dia na semana para a reflexão e a descontração.
Há algum tempo, uns dois anos, ou mais, tinha me afastado de sua campainha, vendo-o apenas de passagem, de vez em quando. Evitava mesmo era conversar com ele. Não estava de mal, mas o fazia para auto preservação. É que dentre muitas das controvérsias que ele sustentava, entramos numa certo dia sobre o alcoolismo e o esforço do alcoolista em parar de beber. Nosso debate começou numa oportunidade em que comentei que me sentia na obrigação de ajudar meu pai, um alcoolista em recuperação, a manter-se sóbrio. Ele achava que isto era banalidade, que os alcoolistas perdiam o controle da bebida por pura sem-vergonhice e que ninguém tinha que cooperar com eles no esforço de deixar o álcool. No seu caso, aos seus olhos, ele bebia porque gostava e tinha o inteiro controle, portento não era senvergonha. Argumentei, porém, que o esforço de mais de vinte anos, ou, que fosse, de três meses, ou um dia, de uma pessoa para parar de beber não podia ser tido por banal, pois o alcoolismo é a maior causa de desgraças não só no Brasil, mas em todo o mundo. Acrescentei que aquele que vence a cada vinte e quatro horas o impulso de beber deve ser admirado e imitado, pois é um herói, embora que não se deva fazer-lhe manifestações de heroísmo para que não se orgulhe e vacile. Ele retorquiu insistindo que não há nenhum mérito em parar de beber, que "esses caras deviam ter vergonha na cara e nem procurar ajuda de ninguém". Suas palavras foram mais ou menos nestes termos.
Diante disso, decide reduzir drasticamente o contato, somando que nos mais de sete anos que o conhecia jamais consegui passar-lhe algo novo e bom. Pelo menos é o que me parece. Ao contrário, muitas vezes tive que tolerar idéias retrógradas, antiquadas, machistas e preconceituosas. Contra algumas lutei em minha vida e outras tantas sempre combati. Me sentia simplesmente retrocedendo de todos os bons pensamentos que aprendi e aceitei em minha vida.
Quanto às mulheres, por exemplo, ele dizia que, tirando sua mãe, nenhuma outra prestava. Muitas e muitas vezes comentou sobre as mulheres que chegavam em sua lancheria, descrevendo como planejava fazer sexo com ela, com a filha dela junto, se possível, e pôr chifres no marido. Algumas vezes falou isso de mulheres de amigos meus, de pessoas de respeito, ou que não fossem. Não importava.
Pensando que jamais lhe apresentaria uma de minhas irmãs, mãe e esposa, continuava sendo seu amigo, pois via que ele precisava de amigo, visto que demonstrava carência e afeição. E por um lado ele era sempre muito agradável, ouvinte, muitas vezes, solidário também.
Muitas vezes ouviu minhas filosofias. É bem verdade que comprou de mim meu primeiro livro pela metade do preço que custava na livraria. Mas, por outro lado, fez muita propaganda minha, me pondo nas alturas porque tinha publicado um livro e estava escrevendo outro. Às vezes fazia isto dando demonstrações de exagerado orgulho da minha pessoa. Eu achava que não era para tanto. Muitas vezes me criticou por eu não propagandear a mim mesmo. Dizia-lhe sempre que “quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”. Frase de Jesus Cristo.
Trabalhava dia e noite em sua lancheria, que oferecia o melhor lanche da cidade. Isto, sem medo de errar. Sou testemunha de que seus lanches eram fabulosos.
Trabalhava até a madrugada, fosse sábado, domingo ou dia de semana. Tinha uma pressa para dar tudo de bom para seu filho, além de adquirir patrimônio que produzisse renda para não ter mais que trabalhar.
Uma das coisas que muito se orgulhava era de não vender bebida alcoólica, o que dizia com a boca cheia. Por um lado isto beneficiava a lancheria, pois as famílias freqüentavam-na por não verem bêbados lá. Por outro, quem queria lanchar acompanhado de uma cerveja, ou encher a cara mesmo, lá é que não ia. Algumas pessoas se ofendiam quando ele dizia que não vendia cerveja, mas ele não recuava dessa posição. Isto era bom, pois assim a lancheria não estava sempre ocupada. Sempre que se chegasse lá era possível sentar e comer. Por esse lado seu negócio também se favorecia.
Nos últimos tempos, quando ainda ia lá, vi que ele tinha conseguido agregar bastante patrimônio. Dizia-me que assim que tivesse garantida uma renda de mil e quinhentos reais por mês pararia de trabalhar tanto. Então ia descansar.
Muitas vezes queixou-se de canseira. Aproveitando, dizia-lhe algumas dessas vezes que devia guardar o sábado, assim se obrigaria a descansar ao menos vinte e quatro horas por semana, o que o ajudaria muito com o esgotamento, com o estresse e o cansaço. Muitas vezes o adverti que o trabalhar demais o faria morrer muito antes de nós, os outros amigos. Mas ele sabia de tudo. Achava que a vida é inesgotável. Tinha lido muitos livros dos adventistas, que algumas "gurias" da colportagem tinham lhe vendido em outros tempos. Um deles tratava de medicina natural, de Helen White. Muitos daqueles ensinamentos ele dizia que um dia praticaria, pois admirava muito. Mas não sei quanto praticou.
Certo é que era muito rancoroso, tendo ressentimento de muitas pessoas. De muitos ele falava mal. Muitos tinham lhe prejudicado e ele não se esquecia disso. Sua ex esposa, a mão de seu filho, era a pior das pessoas, dentre todas as mulheres a mais imprestável. De muitos de meus amigos nem falava para ele, pois sabia que teria algo mal a dizer e me recomendar que não andasse com eles.
Há uns dois messes me viu passando do outro lado da avenida com minha esposa grávida. De onde estava, gritou-me, acenando com o costumeiro cumprimento bonachão. Depois atravessou a rua para cumprimentar-nos na mão. Apresentei-lhe minha esposa, que ele não conhecia. Apertou-lhe a mão educadamente, mas com seu velho olhar matreiro de auto a baixo. Torci para que não fizesse nenhuma observação infeliz. Perguntei-lhe como tinha passado os últimos tempos. Estava muito magro, com a aparência muito diferente do que fora. Na verdade ele era de muito boa aparência. Disse-lhe que soubera que estava com câncer. Ele corrigiu, dizendo que não era câncer, somente uma "doença ruim" nos intestinos. E tranqüilizou, acrescentando que agora estava tudo bem, bastava fazer o tratamento corretamente.
Hoje um de nossos amigos deu-me a notícia de que ele morreu há três dias. Fiquei muito triste, sentindo que devia ter insistido mais para que mudasse alguns de seus pensamentos. Espero que nesses últimos dias muitas de suas idéias fixas tenham sido mudadas mesmo assim. Talvez tenha refletido sobre muitas coisas que leu na Bíblia e naqueles livros dos adventistas e tenha buscado a Deus. Espero que tenha compreendido que não somos perfeitos, que precisamos e podemos pedir perdão, por isto devemos ser tolerantes e perdoadores também, senão nosso rancor é que não nos perdoará e nos matará finalmente.
Wilson do Amaral