FLORES DO OUTONO - Livro de "tankas", publicado em 2008 - CONTEÚDO INTEGRAL

Vejo da janela

uma árvore florescendo

no tempo do outono.

A natureza permite

que eu venha ainda a sorrir.

Árvore florida.

Voam pétalas ao vento

pássaros surpresos.

Em estação sem retorno

sigo à distância o teu voo.

As pétalas rosa

caem na tarde cinzenta

com as gotas de chuva.

Recolho a voz da outra terra

que te cuidou criancinha.

As pétalas caem

sobre a relva desbotada.

Continua o vento

e o mesmo sabor distante

da ancestral canção da tarde.

É tempo de fruto

não de flor. Sei que não sabes

mas eu sei. E sei

que envelheci. Quero apenas

ficar te olhando sem dor.

Ignoro teu fruto

árvore da flor de outono

e da primavera

teu recolhimento próprio

mas, quero aprender contigo.

Assim te contemplo

ao lado das outras árvores,

estranha. Mutante?

Aprendeste a outra face

da alegria. Quem te ensina?

Assim como tu

irá florescer no outono

o homem que amo?

Perdi minha primavera

e não consigo dar fruto.

Queria te olhar

apenas como quem olha

e pousa em teu galho.

Na primavera ou no outono

a flor é apenas flor.

De outro continente

estando aqui. Mas afirmas

teu preciso tempo

sem luta. Como admiro

tua afirmação de ti

e também a terra

noutra estação,que te aceita

parte de si mesma

e acolhe tuas raízes

e as aprofunda sem dor.

Entranhas de mim

para tais profundidades.

Louvação na tarde.

Curvo-me diante de ti

que és estrangeira e daqui.

Criança travessa

jogas esta primavera

sobre os crânios nus

dos carros estacionados

e sós, junto ao meio-fio.

Aquele menino

brinca alheio a esse mistério.

Quando se é flor

pensamento é borboleta

e uma só as estações.

A dona-de-casa

carrega talvez a imagem

do feijão no fogo.

Seu olhar obstinado

vai adiante dos pés

porém o vizinho

de sempre além-mar sorriso

e bengala antiga

não mais está onde o vejo.

Voltou para o seu país.

A chuva passou.

Um tímido sol de outono

vem beijar de leve

a tua copa os teus galhos

tua cor teu carnaval.

Não há solidão

na maneira com que ergues

teus ombros ao sol

e ostentas a flor, o insólito

fruto da tua estação.

Não há solidão

na alegria com que olhas

tuas companheiras

presas ao fado comum

de reproduzir os dias.

Tuas companheiras

também levantam serenas

seus ombros despidos

a carnadura outonal

de antigas mãos tricotando.

Talvez muito existas

espalhada por aí.

Para mim és única

até onde meu olhar

deste ponto no horizonte.

Talvez muito existas

na linhagem dos mutantes

aqui e ali.

Entre os de rosto de outono

cresce o teu plena presença

em mim, solitária

árvore do meu amor.

Nada tu me exiges

e o que te ofereço agora

é gratuito e sem dor.

Olho ao teu redor

e me deixo mergulhar

na paz outonal.

Há mais amores em mim:

o chão de folhas caídas.

O tempo de outono.

Só os silêncios mais fundos

só as relembranças.

Os animais hibernantes

preparando as suas tocas.

O tempo de outono.

Nos cantos aconchegados

as pessoas pensam.

Sementes brotando tenros

frutos à tona dos dias.

O tempo de outono.

Saudades insidiosas

viajando pelo corpo

vinho fulgindo na taça

palavras em algum papel

dias luminosos

mais que em nenhuma estação

luz etérea luz

timbres de argentina paz

nitidez de cada tom

névoas de cristal

sombras de fino matiz

ouro de trigais

sinos de antigas manhãs

silêncios de flutuar

peles se tocando

abraço entre as estações

ciranda de tempos

flores frutos confundidos

em mútuas fecundações.

Tenho tua flor

bem diante dos meus olhos

as pétalas rosa.

Nela não há marca alguma

de estranheza. É uma flor.

Minha mãe a trouxe

colheu-a do chão, do vento.

Seu perfume tênue

penetra-me o olfato e pétala

penso-me, profundamente.

Meu mistério é o teu

mas caem de mim as folhas

como as de outras árvores

que são daqui. Sou daqui

e não. Como tu, e não.

Sinto a comunhão

contigo, mutante amiga.

Sinto a comunhão

com todas, em minhas veias.

O outono: a primavera.

O pássaro-pássaro

não sabe das estações

mas aprendi nomes

e o que sei deste momento:

Quero florescer no outono.

Na noite profunda

as flores adormecidas

teu corpo será

tão semelhante ao de todas.

Leves vestígios de ti.

Folhas-flor somente

única cor repousando

na escuridão.

Todos estaremos sós

e todos apenas um.

Na manhã nascendo

cada qual apenas só

eu abro a janela

e continuas ali.

Nada conheces de mim

e nem é preciso.

Vejo mais flores em ti.

Foi por meu desejo

que brotaste assim tão mais

ou só pelo teu desejo?

As flores de mim.

Escrevendo sobre ti

me sinto brotar

outras formas de ser árvore

de outono ou de primavera.

Flores no papel

não. São apenas palavras

não. Palavras não

apenas. Modo de gente

a brotar, entre outros modos.

Modos de brotar

as múltiplas estações

conchas de silêncio

asas de pássaro pés

de bailarina. As orgias.

Seres a excluir

os excessos de outro ser.

Garis vão varrendo

tantos rosas espalhados

pela rua: tuas flores.

Seres a ampliar

os excessos naturais.

Poemas de amor

transplantados do papel

para o coração da musa.

Uns brotam de acordo

outros contra, outros ainda

sonham com brotar

sem qualquer bússola ou rota

e nem continente à vista.

Continente à vista

sem, e no sonho somente

o anseio indistinto

de ser qualquer flor possível

ou mesmo algum fruto peco.

Mesmo assim brotar

ainda que em pesadelos.

Não há como não.

Também os que implodem a vida

até a raiz – vão brotar.

Brota na janela

um Sol violento.Outono.

Segue teu modelo

de subversão, o Sol.

É meio-dia de abril.

Possa assim do sonho

subverter o sonhador

a rota abortada

e fazer seu fruto ou flor

na vice-versa estações.

Muita hora existe

meio-dia meia noite

tantos semitons

de intermédio: as nuances

de rosa nas tuas pétalas.

Nuances de ti

que o Sol não me deixa ver

mas no tempo certo

verei, róseas filigranas

no fim da hora violenta.

És toda compacta

agora, flor, na tua hora

de plena certeza.

Nenhuma dúvida ou medo.

O cantor, frente ao aplauso.

Contra muita gente

- na verdade, nunca és contra

ou a favor,verso

apenas para trazer-te

assim, mais perto da gente –

não sabes ter medo

das nuances em ti mesma.

Bem poucos de nós

suportam os meio-tons

de si, as próprias ausências.

Perdas de clareza

súbitos apocalipses

o rosto no espelho,

estranho. Qual outro? Quais?

Ninguém a revelar nada.

Respostas insólitas

que de repente irrompem

e por minha mãe.

Milagres acontecidos

no tempo em que não te olho.

Três zebrinhas. Três

ou uma, que diferença?

Zebrinhas brincando

ao redor de ti. De onde?

Minha mãe contou-me agora.

De onde? Do Zoo

em plena rua de asfalto

na hora do almoço

em frente à minha janela?

Jacaré no rio Tietê.

O milagre veio

mesmo de segunda mão.

Milagre é para os

que crêem, e não ver e

crer é milagre maior.

Também não existes

para que eu possa escrever

mas o teu código

é código de outro código

em frente à minha janela.

Zebrinhas são flores

tal as flores que tu dás

e mais: são meninas.

Árvore, que calendário

inauguras nesta rua!

Mal em nossas mãos

a fé costuma escapar.

Agarro com as duas

a luz dessa lanterninha

mágica, inesperada.

Tanto no teu rastro

vou esquecendo o que escrevo.

Tudo escrita? Não,

quase nada, pois a vida

também pode ser palavras.

Leio com prazer

o que me veio de ti

e como se não

nem de mim, mais como tu

assim, a seres aqui.

Escrita automática?

Mesmo que sim talvez não

tal uma criança

a brincar de amarelinha

sim não sim não sim não SIM?

Penso na escrita

e nas suas trajetórias.

Penso em brincadeiras

que nunca vieram à tona

deste louco ofício-ócio.

É sério escrever?

Crianças brincam a sério

- é sério brincar.

Viver é levar-se a sério,

ou não? Vive-se entre aspas?

As velhas perguntas

me impedem a brincadeira.

Olhar é tão simples!

Ah, é? Seria, se eu fosse

tu, e aí não olharia.

O grito da garça

e o relâmpago, fundidos.

Ah, Bashô, quando isso

em nós? Zebrinha completa

em mim, quanto ecoará...

Alguém diz: Passou.

Vi ouvi e já passou.

Mas, vosso relâmpago

e vossa garça, presença

ainda. O quê passou?

Cerco de impurezas

o meu haicai não escrito.

Perdoa-me, árvore.

O amor polui o ente amado?

Com medo, olho tuas flores.

Elas permanecem

sem diferença visível.

O amor impotente

é bom. Tuas estações

dependem de ti. Apenas.

Dou-me conta agora:

Deixei cair a lanterna.

Quando? Em que lugar?

Sei que perdi o caminho.

Qual era mesmo o destino?

No início da ida

para onde queria ir?

Só alguma métrica

e tuas flores, mais nada.

Era simples assim? Era.

Simples parecia,

mas não era. Agora sei.

Trinta e uma sílabas

e tua flor cinco pétalas:

enganos de alta valia.

Com as emoções

resvalando aqui e ali

com o pensamento

resvalando aqui e ali

resvalando...pisam duro

pisam duro e perco

tudo.Consola-me a flor

ainda em teu galho.

Enquanto este nosso outono

primaveril, tenho olhos.

Se dissesse apenas

uma árvore no outono

e cheia de flor

teria quase o preciso

e quase o suficiente.

É isso? E me dói

ter tanto a mais que os meus olhos.

Dói-me te perder

no trajeto das palavras

mas, continuas ali.

Pudesse inverter

minhas estações assim

com facilidade.

Ser naturalmente outra

ser outra, naturalmente.

Árvore impossível

em um jardim japonês

eu te olho olho

olho. Vai esmaecendo

o brilho nas tuas cores.

O homem que amo

também deve estar assim,

olhando. O quê?

Não é possível saber

ainda que ele me conte.

Não tenho o teu nome

mas tua presença agora

é minha alegria

minha única alegria.

Tua flor é minha tarde.

Eu não me conheço

árvore, nem me conheces.

Ninguém me conhece.

Sendo tão desconhecida

só de ti não me vem dor.

Porém, pouco importa.

O que for é, é não mais.

Não sei o que for.

Se afirmo que me conheço

e tu, e todos. Sabemos?

Pessoas passeiam

nas praças ensolaradas

shorts camisetas

cavadas. É primavera

em maio, como se Europa.

Nada sei de árvores.

Em alamedas de outono

paineiras dão flores

muitas, assim me disseram.

Paineira será teu nome?

Não tenho o teu nome.

Há muitas flores de outono

pelas alamedas.

É o amor, ignorância?

Se te souber, eu te perco?

Noites de verão,

maio. Mesas nas calçadas.

Reluzem os copos

de cerveja. As pessoas

bebem, saem dos cinemas.

Chuvas de verão,

outono. Mutantes águas

loucas, pervertidas,

a derrubar troncos...carros...

em ruas de pesadelo.

Para onde foram

as nevoentas garoas

de meus avós...Para

que sonho, os recolhimentos...

Alguma vez existiram?

Flores tuas, parte

da loucura geral, esse

o quinhão que colho.

Apenas as outras árvores

senso comum, estão lúcidas.

Desordem total

mas, há tamanha beleza

na tua desordem!

No antigo outono das outras

também. Amor pendular.

Há loucura lúcida

nas águas desmesuradas

do outono-verão?

Natureza louca lúcida

as águas do fingidor.

Pedras de linguagem

as flores de cinco pétalas.

Pedras de linguagem

também esta face dupla

também o jogo de espelhos.

Alguma beleza

aqui e ali.Um milagre

ao acaso. Olhos

abertos para o impossível-

possível amor. E muito.

Parar no conforto

não. No total desconforto

também não. Parar

quando?

Parar

um

pouco

um pouco

pouquinho?

ir andando andando andando

moto-contínuo moto-contínuo moto-contínuo

ou um RELÓGIO DOÍDO?

PELA PRIMEIRA VEZ OBSERVO REALMENTE UMA ÁRVORE.

É apenas uma árvore florida.

Pouco importa se o seu nome for paineira.

Sinto prazer em olhar para ela.

Alberto Caeiro já o disse

e daqui a mil anos

alguém ainda vai repetir a mesma coisa.

Queria poder olhar com a inocência de antes

de antes da minha primeira palavra sobre ela.

IMPOSSÍVEL LEMBRAR DO PARAÍSO

quando éramos amantes

quando o amor era puro

quando só existia

meu olhar tuas flores

N

U

N

C

P A R A Í S O

H

O

U

V

E

Meu primeiro olhar de amor já estava poluído

pela lembrança das outras árvores.

Nem mesmo às trinta e uma sílabas

fui efetivamente fiel.

NÃO HÁ AMOR PURO.

O amor só cabe na impureza?

Cometi uma traição quando te

CRUCIFIQUEI NA PALAVRA.

QUEM MATEI?

alguma coisa esvoaçando

ao redor de mim

não pode ser uma árvore

nem uma janela

nem uma verdade

POSSO FAZER VOAR QUALQUER COISA

AQUI TUDO PODE ESTAR LIVRE

DA LEI DA GRAVIDADE

OS PESOS TODOS

S

A

I

N

D

O

M

A

O

V

M

A

O

V

O

O

V

M

A

Ç

L

A

EU TE AMO

SOBRE A ESCRITA DO FLORES DE OUTONO

Primeira Parte

Árvore florescendo no outono, imagem vista de uma das janelas do apartamento onde moro. Agora sei que árvores como estas se chamam paineiras e são relativamente comuns nos espaços da cidade. Agora constato também que as árvores têm sido sempre abstrações em mim e que devo ter antevisto muitas paineiras sem relacioná-las ao próprio nome nem a sua florescência no outono. Associada a tal “aparecimento”, a vontade de exercitar uma forma poética originária do Japão: o tanka.

Meu interesse pelo tanka surgiu de alguma leitura e escrita do haicai, também de origem nipônica, o qual se constrói através de três versos de cinco, sete e cinco sílabas, respectivamente. O haicai tem como objeto a natureza, em suas inumeráveis formas no transcurso das estações e solicita a presença do poeta enquanto observador, além de induzi-lo a evitar o uso de figuras de linguagem, redundâncias, raciocínios de ordem filosófica... bem como a elidir a retórica pela qual são expressos os conteúdos emocionais. Dezessete sílabas buscando descrever a especificidade dos fenômenos, com o mínimo de mediações e o máximo de síntese. Como exemplos modelares dessa construção poética, dois haicais de mestre Bashô (*): “O relâmpago e grito da garça/ fundo na escuridão” (poema aludido em estrofe do FLORES DO OUTONO) e “Narciso e biombo/ um ao outro ilumina/ branco no branco.”

“Para que se torne possível a fala das formas do mundo, emudecer ou ao menos acalmar o volume das vozes do eu.” Tal definição do exercício haicaístico, por mim elaborada neste instante, organiza-se por meio de imagens peculiares a um determinado modo de pensar e de sentir a realidade, modo que prioriza a abstração em detrimento do imediato sensível. Poetas conscientes do verdadeiro espírito do haicai, jamais o descreveriam assim. Sendo o poema de dezessete sílabas resultante do contato efetivo com os estímulos recebidos pelos sentidos, sua prática significava, para mim, a desautomatização de certa maneira de “ver” o mundo, melhor dizendo, de não vê-lo; conduzia-me a uma escrita mais contida, objetiva; forçava-me a manter o “eu” fora do centro do discurso.

O haicai mostrava-se instrumento adequado para satisfazer a tais necessidades,

mas o “eu” continuava a solicitar um espaço próprio na “narrativa”. Para oferecer-lhe este espaço, tornou-se imperativo o encontro de outra forma poética, de preferência afim do haicai, percurso que levou, naturalmente, ao tanka. Importante ressaltar: lugar próprio para o “eu”, todavia sem abdicar do princípio da contenção. Obviamente, o emprego da métrica, por si só, não é garantia de síntese, tanto quanto o verso livre não é sinônimo de extravasamento.

O tanka. Pelas breves informações recolhidas, possui uma estrutura de cinco versos (trinta e uma sílabas, sequência cinco/sete/cinco/sete/sete) os quais admitem a descrição tanto dos eventos da natureza quanto a dos conteúdos subjetivos da experiência individual. Tais possibilidades seduziram-me.

Assim, comecei o percurso deste livro tendo uma imagem na retina e um conceito elementar do tanka (seu formato exterior) composição literária tradicional, de grande popularidade no Japão. De Machi Tawara, nascida em 1962, li COMEMORAÇÃO DA SALADA (1° edição no Brasil, no presente ano de 1992); de Takuboku Ishikawa (1885-1912) TANKAS, na 3º edição brasileira, de 1988. Quanto a livros de tanka escritos originalmente em nossa Língua, tive acesso a UM ESTREITO CHAMADO HORIZONTE, do poeta Raimundo Gadelha, (1° edição bilíngue Português-Japonês, de 1991).

O caminho do FLORES DO OUTONO teve como ponto de partida, duas ignorâncias: a de que existem paineiras, também outras espécies de árvores e as mais variadas plantas a produzirem flores no outono; a que se refere às características mais profundas e às nuances do tanka, conhecimento que só poderia advir de pesquisa vasta, que não foi realizada.

A vontade de escrever, uma e outra noção teórica, três livros lidos, o amor à primavera. Permeando tudo, o enlevo diante do contraste entre o corpo florido da “minha” árvore e os corpos de suas companheiras próximas, a perderem folhas e viço, enlevo de alguém que nunca antes tivera olhos efetivos de ver árvores.

O caminho iniciado por duas ignorâncias foi, aos poucos, tornando-se o roteiro para o reconhecimento de obscuridades maiores.

A certeza do amor por determinada árvore, o contínuo olhar embevecido sobre ela. Imperiosa a procura por reproduzi-la, a esta presença, através do registro verbal. Quase à flor da pele, a percepção de que a única coisa sendo reproduzida eram os vestígios, as marcas do encantamento. A PAINEIRA FLORESCE EM CADA OUTONO. O ENCANTAMENTO REFLORESCERÁ OUTRA VEZ?

Cenas de um verão excessivo, chuvas violentíssimas. Para onde fora o universo sutil e mágico do “antigo” outono? Se o outono não é si-mesmo, é natural que floresça tanto. “Tais falas constituem mero jogo de palavras” asseveram alguns leitores; “sofisma” sintetizam outros. Para botânicos e meteorologistas torna-se flagrante, no poema, o desconhecimento absoluto da autora no que se refere aos ciclos, subciclos, contradições de uma natureza tropical. Que respostas dar a estes leitores virtuais? A problemática da verdade e da verossimilhança foi se delineando aos poucos, à medida que os versos se desdobravam. Havia sido instituído, como premissa fundadora do texto, o lugar-comum / Primavera, estação das flores/ / Outono, estação dos frutos. / Permitam-me colocar, no contexto introduzido por vocês, aquele que considero o verdadeiro problema: Se parti de premissa falsa ou melhor, insuficiente, é legítima a poesia dela originária? Em outros termos: Premissas falsas inviabilizam uma escrita poética? A prosseguir por este chão escorregadio, surgirão dúvidas muito mais graves e só me restará, agora e sem hesitações, o ato de queimar, verso por verso, o FLORES DO OUTONO. Queimá-lo, apagar-lhe a memória.

Abordando por ângulo diverso as crises na trajetória do poema, já conscientes das outras flores nas demais paineiras e também dos variados exemplares em árvores me-inominadas, reiterando-se... reiterando-se...através das andanças pelos parques e alamedas da cidade, meus olhos se perguntaram: Amei minha árvore apenas pela sua diferença, a qual não existia? Uma vez sabendo-a semelhante a tantas, desapareceu-me o amor?

O amor vacilou, preencheu-se de escassez, contaminou a escrita com sua dúvida. Fez-se nítida a consciência da impossibilidade de escrever minha árvore, fez-se claro que escrever sobre ela seria perdê-la. Como a escrita começara há muito, há muito começara a perda, consequentemente, a perda das trinta e uma sílabas denominadas tanka, na verdade quintilha sem rigor formal e à margem de suas várias tradições.

Impasse. Ir para onde? Veio-me o ímpeto de encerrar toda a viagem, no momento da estrofe “Alguma beleza aqui e ali. Um milagre ao acaso. Olhos abertos para o impossível-possível amor. E muito.”

Parecia-me mesmo o ponto final. Mas, ponto final de quê? Só a aceitação de duas derrotas, a do amor e a da linguagem. Por que a derrota da linguagem? O texto se fechara; nos subterrâneos, algumas idéias, imagens, percepções se agitavam ainda – a certeza de que nunca houvera tanka veio tempos depois.

Segunda Parte

No espaço vazio, o princípio de algo distinto. Perdida de vez a quintilha, outros versos foram nascendo, assumindo formas ao sabor de suas necessidades até o limite, também, da própria desaparição. De repente, a descoberta: AQUI TUDO PODE ESTAR LIVRE DA LEI DA GRAVIDADE. A volta do indizível amor. A reaparição do enunciado original.

EU TE AMO. Paz profunda. No término, o reinício.

Intuição da existência de outro alfabeto por articular. Certo leitor especial, após percorrer, cuidadosamente, cada uma das páginas do FLORES DO OUTONO até a

última, que retorna à primeira, sugeriu: “Por que você não documenta a gênese e os processos dessa escrita?”

“... FLORES DO OUTONO estaria pleno sem o registro de suas trajetórias? Note-se: pleno, jamais completo, aberto à completitude provisória de cada leitura. Espelho de espelho, espelhos ao infinito ou, só águas passando. Em ambos os casos, a(s) árvore(s) e as escritas também.” Assim terminava o último parágrafo do texto que eu elaborara em julho de 1992, resultado da sugestão daquele leitor especial, documento com o título “Sobre a escrita do FLORES DO OUTONO”, cuja tessitura julguei definitiva até o presente momento, neste também mês de julho, já em 2004.

Doze anos. A escrita em prosa que aspira a algum rigor mas se desvia e o poema propriamente dito permaneceram idênticos a si mesmos. A árvore diante da janela tornou-se muito mais frondosa: raízes, rama, folhas, copa, flores, paina. Também nós outras, leitora e leitura, sofremos várias alterações no enredo, e sulcos (nem todos visíveis nos espelhos). O poema, que dá título ao livro, decidi mantê-lo sem mudanças, e atualizar o segundo texto. Por que conservar intacto o primeiro? Por ser ele o registro primevo do encantamento, dos sentidos que se foram desdobrando, e por constituir a razão fundamental da criação do outro. Quanto a este, firmei-me o desafio de aperfeiçoar-lhe as formas, através da soma de uma e outra nova perspectiva, cuidando de não sacrificar quaisquer de suas principais idéias e imagens, tarefa análoga, até certo ponto, à do tradutor a refazer tradução antiga de própria lavra, por percebê-la infiel, em determinadas passagens, ao espírito do texto estrangeiro.

A paineira tem florescido todos os anos, às vezes demasiado, outras nem tanto. Neste 2004, mínimas flores ensaiaram gestos tímidos, enquanto meu amor pelas metáforas tem voltado a atuar com muita força. Flores mínimas, e a “primavera” não conseguiu acontecer. Talvez seja ausência programada nos genes das paineiras, bem como é possível que a árvore diante da janela não tenha conseguido seguir as regras de seu ritmo interior, simplesmente porque a natureza em que se insere vem, sem dúvida, apresentando-se – agora quase sistematicamente - mais e mais desmesurada quando deveria se conter; muito aquém das margens quando precisaria se expandir. Acrescente-se que semelhantes condutas vêm desorientando plantios, colheitas e especialistas.

As outras paineiras também fizeram greve de primavera no outono deste ano? Todas elas? Algumas poucas? Apenas na cidade de São Paulo? Não tenho, há tempos, percorrido parques e alamedas; se eventualmente o fiz, foi com olhos de não ver árvores, logo não posso aventar sequer esboço de respostas para tais indagações.

Abro a janela para a mesma rua, a mesma paineira, as lojas, algum cão ou gato, as pessoas habituais, as fortuitas, os automóveis estacionados, os que desaparecem rumo a ignotos destinos. Percorre-me sentimento vizinho daquele com que Álvaro de Campos olha, da sua própria janela, a tabacaria de onde lhe acena o Esteves sem metafísica. Consola-me, pôr-do-sol, a percepção repentina da irmandade insolúvel a ligar para sempre janelas, paineiras, tabacarias... Ave, poeta!

“O samba, a viola, a roseira, um dia a fogueira queimou. / Foi tudo ilusão passageira que a brisa primeira levou. / No peito a saudade cativa, faz força pro tempo parar/ mas eis que chega a roda-viva e carrega a saudade pra lá...” O trecho de antiga canção do Chico Buarque voltando à lembrança, tantos excessos de ausência na manhã de 24 de fevereiro. Estamos em 2007. O carnaval acaba de passar e daqui a dois dias começará, efetivamente, o ano no Brasil.

Há uma quinzena encontrei, em manuscrito num fundo de armário, a forma “primitiva” dos versos que constituiriam a primeira estrofe do FLORES DO OUTONO. A data de tal “forma”: 31 de março de 1990. Isto altera a cronologia do livro, tornando dois anos mais antigo o olhar inicial diante da paineira - traição da memória ao verdadeiro momento de origem.

Em 2004, eu mantivera o poema intacto e mudanças foram feitas apenas no texto a decorrer agora diante dos olhos. Acreditava que algo poderia ser mantido a salvo do fluxo do tempo, e que este algo fosse o testemunho escrito do meu amor. Sonho impossível. A presente releitura acabou por gerar alterações também no poema, alterações significativas, por motivos intra e extralinguísticos.

O fato de o FLORES DO OUTONO apresentar uma estrofe por página, tornava o livro deveras espesso. Como em algum lugar de mim permanece a aspiração de vê-lo publicado, urgia torná-lo mais palatável, ou seja, menos oneroso. Para me ater apenas a uma das mudanças desencadeadas, o simples gesto de colocar três estrofes por página formatou a história paralela. Nenhum gesto é simples.

Nada sei de valor de linguagem que o poema possa ter. É provável que ele não constitua senão sequência de puerilidades, colcha de retalhos mal e mal costurada, tanto quanto o texto agora sendo lido, apenas escrita pretensamente lúcida. No entanto devo reiterar, sem pudor, a esperança ainda viva de levá-los a prelo, para que se tornem presença, fortuita que seja; para poucos amigos, que seja. Palavras rarefeitas sob provisórios olhares, inadvertidamente cúmplices do antigo olhar e do amor, amor e olhar desde o sempre irrecuperáveis na escrita, como na vida. Diversos para cada leitor; mesmos-outros para sempre (sic) em cada uma de mim.

A paineira continua, imensa, para além do olhar, da janela, das palavras. Nestes últimos dias do verão, as flores já começam a brotar e a preencher cada um dos espaços da árvore. Frágeis, tantas a cair sob a força do vento serão pisadas e mortas. Depois, uma presença descarnada, nua, se enche de painas as quais, por sua vez, se desmancham no ar. Lentamente, nascem e se espalham folhas de um verde brilhante, aos poucos escurecendo até um tom profundo, que irá se prolongar ao longo do ano. Fosse eu do povo maia, aprendera da paineira as lições sagradas. Imune ao numinoso, meu olhar ocidental apenas lhe acompanha a trajetória inalterável, ano após ano, enquanto houver outonos no Mundo, bem ao contrário da escrita, que poderia prosseguir desobedecendo a ciclos...mas termina agora, para restar na alteridade sem repouso.

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(*) – Matsuo Bashô, poeta japonês (1644 – 1694). O grande mestre, que outorgou ao poema de dezessete sílabas as características que até hoje norteiam haicaístas no Japão e nas várias partes do mundo.