O ANJO E O SAMURAI

Vovô Casimiro é figuraça. É avô de Giorgio Casimiro, o cara que foi contra todas as probabilidades, encontrou-se com uma garota que conheceu pela internet e que morava na distante cidade de Porto Velho, em Rondônia e... quebrou a cara. Já contamos sua história, essa é apenas uma introdução para a que vamos contar agora.

Aliás, todo o caso de Giorgio Casimiro foi verídico que aconteceu, e não nos foi contado por ele, nem por seus amigos, mas sim por Vovô Casimiro! Este singular ancião mora na capital gaúcha, Porto Alegre, próximo do estádio de futebol José Pinheiro Borba, popularmente conhecido como Gigante da Beira-rio. Ele foi militar da marinha brasileira, lutou na Segunda Guerra Mundial, participou da batalha de Monte Castelo na Itália... e tem uma memória impressionante, dizem que a Sociedade de Pesquisas Sobrenaturais Morumbi, de Pernambuco, tem intenção de estudar até onde vai a memória desse nosso personagem.

Além de muito boa memória, nosso caro vovô também tem o dom de contar histórias. Não causos, ou anedotas, ou fatos curiosos, que isso qualquer um sabe, mas histórias, lendas, enfim, como os contos de fadas que nos contavam quando crianças, com o diferencial de ele mesmo inventar algumas, de vez em quando.

Pois esta que aqui transcrevo, foi-me passada por ele, não faz muito tempo. Inicialmente, devo dizer que novamente Giorgio se apaixonou, e por uma pessoa do outro lado do país, desta vez não rondoniense, mas amazonense... que mora em Rondônia! Não muda muita coisa, mas... então, o assunto apareceu, numa tarde, num churrasco na casa do Vovô Casimiro, então ele fechou a cara e disse: “Dos relacionamentos do meu neto não falo mais!” Após uns minutos de silêncio um tanto nervoso, ele arregalou bem os olhos e apontando o dedo para nós que estávamos sentados a mesa, do lado oposto dele, disse: “Mas me lembrei duma história que me contaram, há muitos anos, na época da guerra!” E após dar um gole num copo de cerveja ao seu lado, levantou os olhos e continuou:

“Havia, há muito tempo, um samurai. Ele andava sozinho, com seu dragão, cuidando das terras mais distantes do reino do seu mestre. O samurai evitava as outras pessoas, principalmente as mulheres, porque há alguns anos, uma mulher de um outro reino o havia seduzido, enganado e por fim lhe deixado. Daquele dia em diante, o samurai jurou que jamais iria voltar a amar as outras pessoas, que as evitaria e que apenas admitiria seu dragão como companhia.

“Num dia, ele e seu dragão deram de cara com um grupo de malfeitores, que saqueavam e destruíam os povoados e as vilas do reino do seu mestre. Ele lutou com valentia mas era sozinho, contra um bando muito grande de vilões. Estava prestes a morrer, quando uma mão, empunhando uma katana com um brilho nunca antes visto, dispersou a corja de bandidos que o cercavam. Ele então levantou seus olhos e viu, pousados nele os olhos serenos de um anjo, de corpo de mulher, sorriso doce, vastos cabelos negros e longas asas reluzentes que lembravam as do cisne.

“A mão do anjo tocou a testa do samurai e este caiu num sono profundo, acordando somente no outro dia, quando o sol já estava alto. Ele tinha a sensação de que aquela noite tinha sido um pesadelo, um sonho mal, que depois mudou para um sonho glorioso com anjos e budas cantando osanas a Deus. Mas ao se levantar, sentiu as dores e o ardor das feridas do combate que empreendera na noite anterior.

“O samurai, então, chamou seu dragão, e foi em busca do povoado mais próximo, a fim de encontrar aquela bela guerreira que o ajudou a vencer os bandidos da outra noite. Por dias, ele percorreu todos os povoados do reino do seu mestre, sem encontrar sequer quem conhecesse tal guerreira.

“E todas as noites, antes de dormir, ao lado do seu dragão, ele pensava naquela bela guerreira, de formas tão perfeitas, de olhos tão grandes, belos e serenos, que transmitiam tanta paz ao seu coração, e então uma noite ele percebeu que talvez o sonho com os anjos e os Budas não fosse um sonho, e que ela era como aqueles anjos.

“Compreendeu, então, que aquela que procurava dentre as mulheres do reino, não estava neste mundo, mas num muito superior, ela com certeza morava nos céus, próximo de Deus! O samurai, então, chamou seu dragão, e pediu para que o levasse até os céus.

“E começou a empreender a jornada, montado em seu dragão, o samurai subiu nas alturas, atravessou o céu de estrelas, subindo sempre mais e mais, chegando ao céu que servia de morada aos antepassados, guardado por um homem de pedra com as chaves dos portões dourados amarradas ao ventre, subiu mais, passou pelo céu dos santos, foi penetrando cada vez mais os céus, até chegar ao último céu, antes da morada de Deus, onde viviam os budas, os cristos e os anjos.

“Buscou entre todas as ordens dos anjos, aquele anjo que o havia salvado, até que a encontrou. Cheio de contentamento, o samurai apeou do dragão e correu com a alegria duma criança na direção do anjo.

“Ao chegar próximo dela, ajoelhou-se, então, aos seus pés, tirou o coração do próprio peito, e baixando os olhos, com o temor natural dos mortais ante a presença dos celestiais, apenas levantou-o, oferecendo-o ao anjo.

“Os olhos serenos e cheios de caridade, então, encheram-se de ira, o anjo empunhou sua katana e enfiou a lâmina no coração do samurai. Ante seu olhar espantado, o anjo vociferou:

'Tua nobreza pode ser imensa, samurai, porém teu amor é mundano! Não aceitarei teu coração cheio de chagas, nem te darei meu coração perfeito! O coração dos anjos não pode ser desejado por seres mundanos!'

“Arrasado, sem seu coração cheio de chagas, o samurai voltou sozinho ao mundo e ao reino do seu senhor. Isolou-se de tudo e de todos, até do seu dragão, e nem ao reino de seu mestre ele guardava mais. Deixou-se lentamente, até que foi enfim consumido pelo amor que sentia pelo belo anjo, e seu espírito, frio e sem luz, foi levado por seus antepassados até a presença do guardião de pedra, que deixou que adentrasse os portões dourados, devolvendo-lhe o coração antes deixado nos céus e dizendo 'O amor que tinhas não podia te trazer paz, samurai, e na morte recuperas tua paz.”

O vovô terminou de contar sua história e ficamos, então, todos em silêncio. Lentamente nos voltamos para Giorgio e este chorava copiosamente, murmurando “Não terei mais paz, até morrer, não terei mais paz...”

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 07/02/2009
Código do texto: T1426883
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