Aurora -- um haikai sonhado
Certa noite, em sono profundo, vislumbrei que estava num lugar fechado; um lugar com arcadas que enquadravam a penumbra; era uma espécie de corredor com arcadas mas sendo um dos lados vazado e dando num abismo. Via-se que as arcadas viravam numa esquina em ambos os lados possíveis de se virar, mas a visão do lado do abismo se tornava embassada, como uma câmera mal focalizada. Um dedo apontava, ora para um lado ora para outro e a paisagem vinha ao meu encontro; certa volta, a paisagem se fixou e mostrou, alguns passos à frente, duas jovens negras de fartos cabelos encaracolados, olhar faceiro e vozes que não saiam de suas bocas. Elas seguravam um grande livro, no qual apontavam trechos com os dedos e se digiriam a mim: "não tem eu; você usa muito eu; é eu isso, eu aquilo, eu penso; não pense, você pensa demais; isso não é haicai, não é poesia; liberte-se." Articulavam os lábios ao mesmo tempo, mas a voz era uma só e não vinha de lugar nenhum; pedi que me dessem as instruções para um correto versar; a voz profeiu os seguintes versos: luz do dia cresce/ vidas amadurecem.Riam enquanto falavam, sempre apontando para o livro e para mim. A visão, então, se torna turva e eu acordo com os versos reverberando na minha cabeça. Pego caderno e caneta e transcrevo os versos em letras esgarranchadas; porém, faltava um verso. Será que eu acordei rápido demais, antes que as palavras das musas se completassem? Ouço, como num acaso decido pelo destino antes mesmo de eu nascer, o canto de bem-te-vis: eles cantavam atrás da minha janela, sobrevoando a paisagem de concreto numa dessas manhãs de sol que merecem ser celebradas. O haicai se completara. Não é grande, e nem deveria; é apenas um deboche das musas.
Luz do dia cresce,
Vidas amadurecem.
Canta bem-te-vi.