A segunda pessoa indireta
Certamente que já ouviram falar (e muitas vezes!) de segunda pessoa. O que talvez suscite alguma dúvida é esse ‘indireta’, que aparece no título de nosso texto de hoje; mas, daqui a pouco, será uma dúvida do passado...
Três são as pessoas gramaticais – todos conhecemos. A primeira se refere ao falante ou a um conjunto em que ele se inclui: “EU gosto de futebol” e “NÓS gostamos de futebol”. A segunda pessoa se refere ao ouvinte ou a uma conjunto em que ele se inclui: “TU fazes tuas orações” e “VÓS fazeis vossas orações”. Por fim, a terceira pessoa gramatical diz respeito a algo ou alguém de quem se fala, no singular ou no plural: “ELE vive assistindo a séries estrangeiras” ou “ELES vivem assistindo a séries estrangeiras”. Até aqui, céu de brigadeiro, não?
Na língua portuguesa, essas pessoas gramaticais comandam as formas verbais, que, naturalmente, se ajustam às respectivas pessoas. Um pequeno exemplo: eu estudO, tu estudaS, ele (ela) estudaØ, nós estudaMOS, vós estudaIS, eles (elas) estudaM.
Notaram que a terminação do verbo vai se modificando de acordo com a pessoa gramatical? Esses elementos que destacamos aí nos exemplos são as desinências número-pessoais, ou seja, são os pedacinhos do verbo que traduzem para nós a que pessoa o verbo se refere e, ainda, se nos referimos a uma (singular) ou mais pessoas (plural). Notem que, na terceira pessoa do singular, temos um zero. Esse zero é uma ausência que significa, ou seja, o fato de não haver um segmento fonético é que indica para nós que se trata de terceira pessoa. Continuemos com mais um exemplo. Estamos chegando!
“Tu estudas ciências humanas.” Reforçamos que o pronome ‘tu’, de segunda pessoa do singular, leva o verbo para a segunda pessoa do singular, o que é marcado pela desinência -s. Há uma relação direta entre a pessoa e a forma do verbo. Relação direta, reforço!
Agora, vejam: “Você estuda ciências humanas”. O pronome ‘você’ refere-se ao ouvinte, portanto é de segunda pessoa, mas a forma verbal ‘estuda’ encontra-se na terceira pessoa. Estamos, dessa forma, diante de um segunda pessoa indireta. Perfeito?
As expressões de tratamento do tipo ‘Vossa Excelência’ são casos típicos de segunda pessoa indireta. Assim, em “Vossa Excelência trata com muita distinção todos os seus subordinados”, a forma ‘trata’, de terceira pessoa, refere-se ao pronome de segunda. ‘Vossa excelência’ é um ouvinte a quem, protocolarmente, tratamos com a reverência que o uso linguístico recomenda, em razão de alguma função ocupada pela pessoa: presidente da República, govenador etc.
Por fim, uma curiosidade importante. O professor Suárez Abreu, na excelente Gramática integral da língua portuguesa (2022, p. 234) ensina que essas expressões de reverência surgiram numa época em que a pessoa diante de um superior não ousava lhe dirigir diretamente a palavra e se referia a ela falando de uma de suas características. Assim, dizer “Vossa Excelência me daria a honra?” equivaleria a algo assim: “A Vossa Excelência (ou seja, a excelência, a grandeza que o ouvinte possui) me daria a honra?”.
Como vemos, com o passar do tempo, a qualidade da pessoa foi sendo usada como tratamento para a pessoa. Compreenderam?
O mesmo aconteceu com o pronome ‘você’, que, como quase todos sabemos, é a evolução fonética de Vossa Mercê, uma antiga forma de reverência.
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