O verbo ‘ter’ em sentido existencial — um caso de hipercorreção

Certamente que o eventual leitor já ouviu alguém começar a dizer uma frase do tipo ‘Havia problemas evidentes...’ e, ato contínuo, corrigir a construção para ‘haviam problemas’. Nesse caso, ocorreu um processo de hipercorreção. Mas o que seria esse fenômeno? Vejamos.

E sabido que, em português, o verbo concorda com o seu sujeito em número e pessoa. O autor da citada frase aprendeu que, pelas orientações da gramática, o adequado, o correto é dizer ‘ocorriam problemas’, ‘aconteciam situações’, ‘existiam dúvidas’. Viram? ‘Problemas’, ‘situações’ e ‘dúvidas’ – na condição de sujeito – levaram o verbo para a terceira pessoa do plural. Tudo bem simples. Acredito.

Ocorre que a tradição da língua consagrou o verbo ‘haver’, no sentido de ‘existir’ e congêneres, como impessoal, ou seja, um verbo que não possui sujeito e, portanto, fica na terceira pessoa do singular. Uma das explicações possíveis é que a terceira pessoa do plural de ‘haver’, no presente do indicativo, teria motivado a construção no singular. Construções malsonantes do tipo ‘hão problemas’ teriam desencadeado a impessoalidade verbal. Assim, a tradição gramatical consagrou as formas ‘há, havia, haverá, houve problemas etc.’, sendo pertinente concluir que, se não há concordância, não há sujeito. No caso, ‘problemas’ funciona como objeto direto do verbo. Estamos indo?

Mas voltemos à frase do primeiro parágrafo. Observem que, quando se corrige, o autor, na verdade, está usando uma regra geral – incutida na sua mente –, mas que, apenas aparentemente, aplica-se à situação apresentada. Em suma, ele corrige o que está correto. Ele deve ter pensado assim: ‘Havia? Não! Haviam, pois o que vem depois é plural’. A isso se chama de hipercorreção.

Esse fenômeno está acontecendo, modernamente, com o verbo ‘ter’ usado em registro coloquial e mesmo em textos formais.

Num livro antigo, mas famoso, chamado ‘O modernismo brasileiro e a língua portuguesa’, Luiz Carlos Lessa cita uma série de exemplos do emprego impessoal do verbo ‘ter’ em sentido existencial, lembrando que se trata de algo raríssimo na sintaxe lusitana. Vou reproduzir três exemplos de Lessa:

“...tem alguns que fazem combinação e, num determinado momento, certo como um piscar de farol, soltam um uivo inarticulado...” (Raquel de Queirós). Observem que a forma ‘tem’ está grafada sem acento, portanto é singular e não concorda com ‘alguns’.

“Tinha também alguns com a pele morena por demais” (Mário de Andrade). Observem a não concordância entre ‘tinha’ e ‘alguns’. Este último é objeto direto, não sujeito. Claro?

“Tinha ali nascentes que só secavam nos anos de seca grande” (José Lins do Rego). Valem as mesmas considerações do exemplo anterior.

A conclusão a que chegamos (reforçamos!) é que o verbo ‘ter’ no sentido existencial é impessoal, ficando, portanto, na terceira pessoa do singular.

O que está ocorrendo na mídia moderna (fala de repórteres, locutores etc.) é um processo de hipercorreção, como atestam construções do tipo ‘tinham milhares de pessoas’, ‘terão consequências’, ‘teriam observações importantes’ etc. muito, muito comuns. Exemplos não faltam. Não é raro ouvirmos jornalistas se corrigindo, assim: “Teve manifestantes, ou melhor, tiveram’. É só observarem... Da linguagem falada para escrita é questão de tempo, se é que não haja muitos registros na língua escrita considerada culta. Breve pesquisa me levou ao seguintes registros em sites de notícias:

“No conflito tiveram disparos de arma de fogo para pressionar a saída dos moradores.” (noticiahoje.net)

Porém tiveram muitas pessoas revoltadas com a reeleição do rapaz e também pelo posicionamento político da apresentadora... (otvfoco.com.br)

O fato notório é que – por um processo de hipercorreção – o verbo ‘ter’, na acepção existencial, está se pessoalizando, na língua falada. O tempo dirá da força dessa construção tão comum na modernidade.*

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