Ilustração: Obras literárias brasileiras. Capas. Montagem
TEXTOS PARA ESTUDOS

SUMÁRIO
 

Apresentação
 
Nesta seção da Coletânea REDIGIRMelhor, vão uma seleta de textos (didáticos, jornalísticos, literários), com a devida identificação de autor/editor, utilizados como instrumento didático de aprendizagem de redação e língua portuguesa.

Nota importante
 
Todas estas citações/transcrições de textos ou trechos de textos foram feitas para fins de estudo da língua portuguesa, e cada uma delas está vinculada, em alguma Página desta Coletânea, a um exercício, ou a um teste, ou a uma análise de texto, ou a uma reflexão linguística.

Obras didáticas

ÍNDICE
 

          Descrever, narrar, dissertar
     
Como somos todos velhos fazedores diários de comunicação com as palavras, é importante que você, desde agora, reconheça os três modos fundamentais de redação: esse conhecimento é o abc de nossa prática. 
   
Pegue sua caneta e olhe para sua mão. Observe o objeto, atentamente. Repare suas formas, com todos os detalhes. Suas cores. Agora, feche os olhos e sinta com o tato a espessura da superfície, o peso, a temperatura.      Descubra que ruídos provoca ao contato com outro corpo. Seu gosto e seu cheiro. Faça de conta que você não sabe que esse objeto é uma caneta: é um objeto estranho, visto pela primeira vez. Perceba-o, assim, com mais intensidade, com a motivação da descoberta das coisas novas. Concentre-se nas características que você pôde perceber, para caracterizar o objeto da melhor maneira possível. Procure apresentar com as palavras uma imagem dele, de modo que o leitor possa recriar o objeto. Isso é DESCREVER...

 
 
     
Agora, olhe ao seu redor. Veja quantas coisas movimentam-se ao seu lado. Note o mundo dos pequenos fatos, fatos mínimos, miúdos, pequenos gestos ― acontecendo intensamente em torno de você. Essas situações podem ser relatadas, assim como os acontecimentos do dia, assim como podemos criar inumeráveis histórias. Escrever para contar o que acontece, com quem, onde e quando, como e porque e para quê.      Escrever imaginando histórias, inventando e reinventando acontecimentos possíveis infinitamente, passíveis de serem concebidos pela nossa sensibilidade, pela nossa inventividade sem limites. . . Isso é NARRAR...

 
     
Quando alguém pergunta suas opiniões sobre a vida, quando alguém lhe propõe uma discussão sobre um tema, um aspecto do mundo em que estamos, do mundo que somos, como você responde? Em outras palavras, quais são suas posições, suas opiniões, seus questionamentos em relação a você, às outras pessoas, à realidade que nos circunda e da qual nos impregnamos dia após dia? Quando nós questionamos um aspecto qualquer da realidade — tomando-o como tema, como problema —, estamos dissertando. Expressamos nossa opinião, expressamos os porquês de nossa posição.  Discutimos. Argumentamos. Dissertar é questionar um tema, debater um ponto de vista, desenvolver argumentos. Ou seja, exercer nossa consciência crítica.

 
     
Como você está vendo, descrever, narrar e dissertar são atividades permanentes, com mais ou menos intensidade, em nossa vida cotidiana. Práticas que atravessam nossa existência, misturando-se livremente; todos os dias descrevemos narramos, dissertamos. Agora, é importante tomarmos consciência delas, dos seus processos, de suas estruturas, para desvendarmos nossa capacidade de caracterizar, de contar e de questionar. O que significa desenvolvermos nossa capacidade de linguagem e de pensamento, ou seja, nossa capacidade de comunicação através das palavras, nossa capacidade de desvendamento e, portanto, de construção do mundo em que estamos, do mundo que somos, do mundo que sonhamos. 
 SEVERINO, Antônio; AMARAL; Emília. Escrever é desvendar o mundo. A linguagem criadora e o pensamento lógico. Campinas, SP : Papirus, 1986, p. 38-40.
Técnicas redacionais

1. INTRODUÇÃO

Redigir, compor uma redação, um texto, é uma técnica que implica domínio de capacidades linguísticas. Assim, estamos diante de 
processos intelectuais que envolvem, basicamente, dois momentos: o de formular pensamentos (aquilo que se quer dizer) e o de expressá-los por escrito (o redigir propriamente dito). Fazer uma redação — seja ela de que tipo for — não significa apenas a atuação de uma capacidade de escrever de forma correta, mas, sobretudo, a de organizar as idéias sobre determinado assunto.

A linguagem escrita, basicamente diferente da linguagem oral, está, conforme diz Mattoso Câmara Jr., “em essência relacionada com a linguagem literária. Um livro técnico, uma monografia, um artigo de jornal ou de revista não são — nem devem procurar ser — literatura no sentido estrito do termo, mas a ela se ligam pelo cordão umbilical de sua natureza co trabalho escrito.”

Assim, a condição básica para bem redigir é que se tenha presente e claro o conteúdo do que se quer expressar. “O que é bem 
concebido”, diz Boileau, “se enuncia claramente.” Isto quer dizer que as coisas devem estar claras para nós antes de serem comunicadas (ao outro ou ao papel).

Daí a importância que assume para uma boa redação a bagagem cultural de quem escreve.

Diz o Prof. Mattoso Câmara Jr. que “A Arte de escrever precisa assentar (...) numa atividade preliminar já radicada, que parte do 
ensino escolar e de um hábito de leitura inteligentemente conduzido; depende muito, portanto, de nós mesmos, de uma disciplina mental adquirida pela autocrítica e pela observação
cuidadosa do que outros com bom resultado escreveram.”

Isto quer dizer, aprender os padrões linguísticos observando como escrevem os bons escntores.

Mas se a observação cuidadosa dos bons modelos e a assimilação de padrões linguísticos é um dos recursos para obter uma boa forma na escrita, é preciso que não se perca de vista que na experiência de redigir entram, como elementos fundamentais, a inventividade e a percepção da  realidade que tem aquele
que escreve.

Se o ato de escrever parte de uma formulação de pensamentos, é preciso que esses pensamentos se organizem de forma criadora, 
estimulados pela sensibilidade, pela consciência viva do mundo que nos rodeia, pela descoberta de relações, por uma visão própria da realidade. A esta capacidade de renovar o real e apresentá-lo à nossa maneira, chamamos, em geral, criatividade e ela é uma das molas mestras para a consecução da boa redação.

São assim etapas do processo de escrever:

 
1 — A criação e formulação de idéias (conceber e organizar)
2 — A expressão escrita dessas idéias.

Na segunda fase é que se torna muito importante o domínio do código escrito, ou seja, a boa execução da linguagem.

2. A EXPRESSÃO ESCRITA

A linguagem escrita, por sua natureza diferindo da linguagem oral, tem de ser mais elaborada, mais clara, mais definida do que 
aquela. Quem escreve não conta com os recursos do gesto, do tom, da mímica, das pausas, de que dispõe aquele que fala. Quem fala tem o ouvinte a sua frente e se dirige a um público definido num contexto definido. Ninguém escreve como fala, embora modernamente a língua escrita, em seu uso diário, coloquial, se aproxime mais da língua falada.

Quando escrevemos, desligamo-nos do tempo e do espaço. Não podemos em geral determinar onde e quando vamos ser lidos. Esta é uma característica da língua escrita; é essa impessoalidade também que faz com que o código escrito seja mais fixo do que o oral (a língua falada). E também por essa maior per.
manência da forma escrita que se assegura a continuidade da tradição linguística dos povos.

3. AS QUESTÕES DO CÓDIGO ESCRITO

3.1 O PARÁGRAFO

A estrutura e a composição do parágrafo se relacionam com as idéias que queremos expressar. Ternos idéias reunidas num parágrafo, quando elas se relacionam entre si pelo seu sentido.
Dentro do mesmo parágrafo podemos ter diferentes idéias, desde que elas, reunidas, formem uma idéia maior. São quali-
dades principais do parágrafo a unidade e a coerência.

3.2 O PERÍODO. A FRASE

O período contém um pensamento completo que, embora se relacionando com os anteriores ou se ampliando nos posteriores, forma um sentido completo.

Ex.: “Era uma borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei que fosse uma bruxa ou outro qualquer desses insetos que fazem vida urbana; mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela”.
(Rubem Braga.)

Temos aqui um parágrafo, com dois períodos. O primeiro período tem apenas uma idéia, O segundo tem várias mas forma um todo. No total, o primeiro e o segundo período formam um bloco homogêneo, o parágrafo.

O período pode ser simples (como, no nosso exemplo, a frase: “Era uma borboleta») ou composto (como a frase: “Passou roçando (...) 
borboleta amarela”). No período simples temos apenas uma oração, no período composto temos várias orações articuladas entre si.

A predominância de períodos longos ou curtos na composição de um texto depende muito do estilo de quem escreve.

Na linguagem moderna predomina o uso de períodos curtos.

Ex.: “Depois, as coisas mudaram. Há duas explicações para isso. Primeira, que nos tornamos homens, isto é, bichos de menor 
sensibilidade. Segunda, o governo, que mexeu demais na pauta dos feriados, tirando-lhes o caráter de balizas imutáveis e amenas na estrada do ano. . . Multiplicaram-se os feriados enrustidos, ou dispensas de ponto e de aula, e perdemos, afinal, o espírito dos feriados». (Carlos Drummond de Andrade.)

Nesse parágrafo de Carlos Drummond de Andrade, escritor brasileiro contemporâneo, os períodos curtos predominam.

Por outro lado, em escritores do romantismo, os períodos longos eram freqüentes e abundantes, como, por exemplo, neste trecho de José de Alencar:

"Felizmente todo o deserto tem os seus oásis, nos quais a natureza, por um faceiro capricho, parece esmerar-se em criar um pequeno berço de flores e de verdura, concentrando nesses cantinhos de terra toda a força de seiva necessária para fecundar as vastas planíces."
.............
Prof. Lígia Morrone Averbuck. O Globo - Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, págs. 51-52
 

Textos de jornais e revistas
 
ÍNDICE
 

A linguagem dos tecnocratas
Recolho ao acaso, nos instrutivos pronunciamentos de nossos tecnocratas, alguns vocábulos de sua especialíssima linguagem, que me possam amparar se porventura eu for atingido pelo surto de interpretose que assola o país:
 
Direcionar — em lugar de orientar, dirigir (a não ser que se trate de automóvel).
Questionamento — ato de discutir, propor questões, disputar.
Segmento — palavra muito em moda atualmente, indispensável em qualquer questionamento. Usa-se em lugar de classe, camada, categoria, nível, porção, seção, fração, etc. Ex.: segmento da sociedade (quase sempre é da sociedade). Cuidado para não escrever seguimento, que não tem nada a ver.
Acionar — Ação a que se submete o dispositivo.
Dispositivo — Algo que deve ser sempre acionado. Nada a ver com dispositivo intra-uterino.
Logística — no feminino, como substantivo, significando planejamento. Em geral é coisa de guerra, linguagem de militar. No masculino é adjetivo, serve unicamente para acompanhar a palavra apoio.
Estratos — no sentido de camadas. Sempre no plural e sempre sociais: estratos sociais (no singular, use segmento mesmo). Cuidado para não escrever extratos com x. Não é perfume.
Abrangente — palavra que deve ser usada para enfeitar o estilo (um estilo abrangente), bem como a sua irmã emergente, sem querer com isso dizer grande coisa.
Mister — em lugar de necessário. Impressiona muito, sobretudo as crianças. Cuidado para não dizer mister.
Equacionar — dispor os dados de uma questão de forma não propriamente a resolvê-la, mas a impressionar o leitor ou ouvinte.
Módulo — irmã-gêmea de parâmetro. Meio fora de moda, restrita a arquitetos.
Otimizar — fazer com que uma coisa se torne boa, muito boa mesmo,  ótima! Melhor do que antes. Não serve para mulher, comida, essas coisas — só para operacionalizações.
Operacionalizações — no sentido de funcionamento. A palavra, aliás, não existe, o que não tem a mínima importância para o verdadeiro tecnocrata.
Parâmetro — em vez de modelo, norma, padrão, princípio. Boa palavra, de encher a boca.
Cooptação — última novidade, deve ser usada com freqüência, mesmo sem que se saiba exatamente o que significa. Sabe-se que não significa escolher, optar, embora possa ser usada neste sentido, ninguém perceberá.
Proposta — no lugar de idéia, sugestão. Quando for propostas mesmo, usar a palavra proposição.
Discurso — no sentido de exposição metódica de determinado assunto. Se quiser referir-se a discurso propriamente dito, usar outra expressão, como por exemplo peça oratória.
Casuística — outra palavra impressionante, também muito em moda ultimamente. Lançada pelos médicos, com o sentido de registro dos casos clínicos e cirúrgicos, deve ser usada sem sentido algum, referindo-se a certos casos de consciência, como fecho do discurso.

E chega! Não preciso mais do isso para a formulação (me esqueci desta) de meu pensamento tecnocrata. Vamos lá:

 
Para direcionar o questionamento dos problemas que afetam determinado segmento da sociedade, acionando o dispositivo de uma logística que atinja os estratos sociais emergentes, faz-se mister equaciona-los em módulos abrangentes, que otimizem a operacionalização, segundo parâmetros impostos pela cooptação da proposta contida no discurso de nossa casuística.
                                              
Fernando Sabino. Dito e Feito. O Globo, 1979

 
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A loucura gongórica dos juristas 

Tenho a impressão de que alguns de meus colegas juristas estão ficando malucos. Não. Não estou sendo agressivo. Vou esclarecer. Minha impressão resulta de um fato simples. Tenho lido trabalhos jurídicos, de caráter monográfico ou simples artigos de informação, escritos em estilo tão complicado, entre o medieval e o gongórico, que não consigo entender nem o sentido nem a intenção de quem os escreve.

Um dos fenômenos profissionais mais característicos da época contemporânea é o do rebaixamento do prestígio dos juristas. Antes se dizia que este era o país do bacharelismo. Não mais. Os juristas caíram de moda. Pelo menos, em boa parte, o decréscimo de seu prestígio deve ser debitado a seu estilo confuso de dizer as coisas, no falar e no escrever sob a desculpa de serem técnicos. Há juízes, advogados e promotores que ainda não souberam da morte de Justiniano, o codificador que construiu as bases do Direito Romano há catorze séculos. Uma pessoa culta deve conhecer Justiniano. Contudo, para se comunicar hoje em dia, não precisa se manifestar no mesmo estilo dos tempos da Roma antiga.

Também há juristas que ainda não souberam da morte de D. Luiz de Gôngora ou da superação do Barroco. Servem-se de expressões absolutamente fora da moda. Complicam pelo prazer de complicar.    O direito, porém, deve ser simples. Não há razão para enunciar complicadamente, a menos que se queira confundir, sem esclarecer. Não há, portanto, a menor razão para adotar expressões fora da época, nem para construir frases num estilo cipó, que deixa longe o nosso Euclides da Cunha, sem nenhum benefício para a exposição.

Os grandes mestres escrevem simples. Kelsen, entre os filósofos, é difícil de entender pela profundidade das idéias que expõe, mais ninguém pode se queixar da limpidez de seu estilo. Carnelutti, o grande processualista, tem um bem-humorado estilo coloquial, que torna sua leitura, além de esclarecedora, muito agradável.

Precisamos compreender que somos homens de nosso tempo, premidos pelas circunstâncias da sociedade contemporânea, em que a comunicação é fundamental, ajustada à velocidade das transformações. O direito é um fato cultural. É um fato em que a clareza da linguagem, a precisão do entendimento que o destinatário dá à palavra escrita, a pluralidade heterogênea dos que têm de aplicar e de sofrer seus efeitos, devem ajustar a compreensão do jurista teórico à realidade prática. Na medida em que o trabalhador jurídico transforma o direito numa arte hermética, ele é merecidamente passado para trás. Mostra que está com o passo errado, não os outros.

Se continuarmos a supor que a linguagem medieval é uma boa mostra de erudição, estaremos perdidos. A ignorância, o mau domínio da língua, os erros grosseiros cometidos por grande parte dos bacharéis são insuportáveis. Contudo, o extremo oposto, do sacrifício da clareza em favor do absurdo das citações desnecessárias ou das acrobacias com anacronismos linguísticos é algo que não se pode tolerar. Pior ainda, quando mal-empregados, como lembrou o último “Jornal” da OAB do Distrito Federal, em crítica bem lançada.

Tenho de buscar a mais sábia das lições em um não jurista: Napoleão Bonaparte. Queria que o Código Civil francês fosse escrito (há quase duzentos anos) com tal clareza que pudesse ser entendido por todos os cidadãos. É o que explica em parte o fato de que, entrado em vigor em 1804, ainda permanece vigente, tendo inspirado inúmeras codificações em todo o mundo. Retifico o começo deste comentário. Os juristas não estão ficando malucos. Estão, sim, deixando os outros malucos com suas complicações.
                                      (Walter Ceneviva – Folha de São Paulo – 22.03.1987)

Textos digitais
 
ÍNDICE
 
De
     Es

Obras literárias

ÍNDICE
 
 

A gramática matrimonial do coronel
      Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

                     
Anjo adorado!
                    Amo-lhe!
 
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão.
 Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarces de pretexto — para umas certidõeszinhas, explicou.
     Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
     Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
     — A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada nesta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca — nunca ouviu? — que contra ela se cometa o menor deslize.
     Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
     — É sua esta peça de flagrante delito?
     O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
     — Muito bem! Continuou o coronel, em tom mais sereno. Ama, então minha filha e tem a audácia de o declarar. Pois agora...
     O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
     — ... é casar! concluiu,  de improviso, o vingativo pai.
     O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se com lágrimas nos olhos, disse, gaguejante:
     — Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora! ...
     Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
     — Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
     E voltando-se para dentro, gritou:
     — Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
     O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
     — Laurinha, quer o coronel dizer...
      O velho fechou de novo a carranca.
     — Sei onde trago o nariz, moço. Vossuncê mandou este bilhete à minha Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher.
     — Oh, coronel ...
     — ... ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!
      O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial.
      — Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa — quem fala, e neste caso vossuncê; da segunda pessoa — a quem se fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de que se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
      Não havia fuga possível.
     O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretaria uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos dizia, teatralmente:
     — Deus vos abençoe, meus filhos!
      No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o encalhe, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor da língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica. (...)
 
(Monteiro Lobato. Negrinha — O Colocador de Pronomes — Edit. Brasiliense, 1978, pp. 79/80)

 
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A vírgula não foi feita para humilhar ninguém
     
     Era Borjalino Ferraz e perdeu o primeiro emprego na Prefeitura de Macajuba por coisas de pontuação.
Certa vez, o diretor do Serviço de Obras chamou o amanuense para uma conversa de fim de expediente. E aconselhativo:
      — Seu Borjalino, tenha cuidado com as vírgulas. Desse jeito, o amigo acaba com o estoque e a comarca não tem dinheiro para comprar vírgulas novas.
      Fez outros ofícios, semeou vírgulas empenadas por todos os lados e foi despedido. Como era sujeito de brio, tomou aulas de gramática, de modo a colocar as vírgulas em seus devidos lugares. Estudou e progrediu. Mais do que isso, saiu das páginas da gramática escrevendo bonito, com rendilhados no estilo. Cravava vírgulas e crases como ourives crava as pedras. O que fazia o coletor federal Zozó Laranjeira apurar os óculos e dizer com orgulho: 
     — Não tem como o Borjalino para uma vírgula e mesmo para uma crase. Nem o presidente da República!
      E assim, um porco-espinho de vírgulas e crases, Borjalino foi trabalhar, como escriturário, na Divisão de Rendas de São Miguel do Cumpim. Ficou logo encarregado dos ofícios, não só por ter prática de escrever como pela fama de virgulista. Mas, com dois meses de caneta, era despedido. O encarregado das Rendas, funcionário sem virgulas e sem crases, foi franco:
     — Seu Borjalino, sua competência é demais para repartição tão miúda. O amigo é um homem de instrução. É um dicionário. Quando o contribuinte recebe um ofício de sua lavra cuida que é ordem de prisão. O Coronel Balduíno dos Santos quase teve um sopro no coração ao ler uma peça saída de sua caneta. Pensou que fosse ofensa, pelo que passou um telegrama desaforado ao Senhor Governador do Estado. Veja bem! O Senhor Governador.
      E por colocar bem as vírgulas e citar Nabucodonosor em ofício de pequena corretagem, o esplêndido Borjalino foi colocado à disposição do olho da rua. Com uma citação no Diário Oficial e duas gramáticas debaixo do braço.
(José Cândido de Carvalho. Porque Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon)  
 

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Rui Barbosa e o caso Minas  x  Werneck (1916/17)

Abaixo vai um resumo de um caso histórico e paradigmático: o caso Minas X Werneck, no qual se discutiu a constitucionalidade do Juízo Arbitral no arrendamento da estância hidromineral de Águas Virtuosas de Lambary, entre 1916 e 1917.

Em 1912, no Sul de Minas, na estância de Águas Virtuosas de Lambary, atual Lambari, o engenheiro Américo Werneck, que fora o primeiro prefeito da cidade, firmou com o Estado de Minas Gerais contrato de arrendamento para exploração da Estância de Águas Virtuosas, por 90 anos. Por conta desse contrato, concluiria as grandes obras da cidade: Cassino, Lago, Cascata e Farol do Lago, remodelação do Parque das Águas, Balneário, etc.[1]

O descumprimento desse contrato por parte do Governo de Minas, alegado por Werneck, deu origem a uma ação rescisória na Justiça Federal de Belo Horizonte, em 1913. Então, por acordo entre as partes, os conflitos e as penalidades decorrentes da execução do contrato foram resolvidos por Juízo Arbitral, instaurado em 1915, tendo a decisão arbitral, proferida em 1916, condenado o Estado a vultosa indenização.
Minas Gerais, que propusera o juízo arbitral, insurge-se em sede judicial contra a decisão, contratando Rui Barbosa para interpor recurso no Supremo Tribunal Federal, na tentativa não só de obter a nulidade do laudo como também de atacar o processo de arbitragem em si.[2]

Quase dois anos depois, inobstante a extraordinário e erudito trabalho jurídico de Rui Barbosa, o STF manteve a decisão arbitral favorável a Werneck, e a Questão Minas X Werneck se tornou uma das poucas derrotas do magistral advogado.

Desse litígio histórico, participaram Rui Barbosa, J. X. Carvalho de Mendonça, Esmeraldino Bandeira, Rodrigo Octávio, Heitor de Souza e Edmundo Lins, esses três últimos membros do Supremo Tribunal Federal. Tal caso ficou conhecido como a Questão Minas X Werneck. (BARBOSA, 1980, Vol. XLV 1918, tomos IV e V; SOUZA; 1915; OCTÁVIO, 1979).

Assim, esse caso se tornou um dos mais célebres processos daquela do Supremo Tribunal Federal no início do Século XX, em razão dos grandes juristas que participaram da discussão, especialmente Rui Barbosa.

De fato, Alberto Venancio Filho, advogado, jurista, professor, historiador, em palestra proferida no STF no dia 28 de outubro de 2008, na qual comentou as atividades do Supremo nos seus 30 primeiros anos de existência (entre os anos 1890/1920, na República Velha), assim se referiu a Rui Barbosa:

 
A história do Supremo Tribunal Federal está indissoluvelmente ligada à atuação de Rui Barbosa desde o habeas corpus de 1892 até as questões da década de 1920.[3]

Em sua fala, Venancio Filho destacou as causas mais expressivas examinadas pelo Tribunal naquele período, e entre elas pôs a Questão Minas X Werneck:
 
Questão de relevância teve o Supremo ao decidir matéria de arbitramento. Américo Werneck contratou, com o Estado de Minas Gerais, a exploração por noventa anos da Estância Hidromineral de Lambari. Logo no início do contrato, surgiram divergências, e Werneck ingressou com ação por inadimplemento culposo. No curso da ação, as partes decidiram submeter a questão à arbitragem (...) O laudo concluiu que Werneck tinha direito à indenização. Inconformado com a decisão, o Estado de Minas contratou Rui Barbosa para apresentar a apelação ao Supremo.

Curiosamente, em questão anterior em que representara o Estado de Minas em questão contra o Espírito Santo, defendia ele que não era possível apelação no caso de arbitragem, mas sim pedido de anulação. O fato foi explorado pelo advogado de Werneck, Rodrigo Otávio, e Rui teve de reconhecer a incoerência. No pedido estava o fato de que os árbitros excederam os seus poderes. Mas o Supremo, restringindo o exame da matéria, denegou o pedido, Relator Pedro Lessa, julgando que não houvera excesso dos árbitros.

A notável contenda rendeu ainda belas páginas de nossa literatura forense. De um lado, Rui Barbosa, o maior dos advogados brasileiros (BARBOSA, 1980, Vol. XLV 1918, tomo IV); de outro, Rodrigo Octávio, advogado de Werneck, futuro ministro do STF e membro da Academia Brasileira de Letras (a, b). De outro, ainda, o jurista Heitor de Souza, advogado do Estado de Minas Gerais e depois Ministro do STF. O seu livro Juízo Arbitral (c) é fonte preciosa para conhecimento dessa contenda. E deve-se citar também J. X. Carvalho de Mendonça (que participou como árbitro), o mais ilustre dos nossos comercialistas, autor de dezenas de obras jurídicas e de um clássico do nosso Direito: Tratado de Direito Comercial Brasileiro.

Rui, que se tornara famoso com a discussão da redação do Código Civil, fará, nesse caso de Minas X Werneck, uma das mais brilhantes peças literárias jurídicas sobre a contradição, diz o Ministro Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva, do STF, que elaborou brilhante introdução a essa memorável obra de nossas letras jurídicas (a).

Com efeito, em uma causa anterior, Rui Barbosa, como advogado do Estado do Espírito Santo, sustentara que as decisões arbitrais, quando convencionada sua irrecorribilidade, não seriam passíveis de revisão pelos recursos ordinários, ou seja, por apelação. Agora, no entanto, o grande advogado sabia que "a  Rui se iria contrapor Rui".

Na obra Minas X Werneck, prossegue Nascimento e Silva, a advocacia se mostra, com todo o esplendor, muito mais como arte do que como ciência – num dos grandes momentos da dialética jurídica e da arte da argumentação do foro brasileiro. E nela Rui escreverá estas palavras imortais:

Só a ignorância ou a imbecilidade se não contradizem; porque não são capazes de pensar. Só a vulgaridade e a esterilidade não variam; porque são a eterna repetição de si mesmas. Só os sábios baratos e os néscios caros podem ter o curso das suas ideias igual e uniforme como os livros de uma casa de comércio, porque nunca escreveram nada de seu, nem conceberam nada novo.

Em 1921, no Governo Artur Bernardes, mediante acordo que dispensou parte dos juros, honorários e custas, o Estado de Minas Gerais quitou o débito com Américo Werneck.

Desse caso histórico, ressumbram princípios do instituto da arbitragem presentes ainda hoje em nosso ordenamento jurídico: a instauração do juízo arbitral por acordo dos contratantes, órgão público como parte, a livre escolha dos árbitros (Carvalho de Mendonça e Edmundo Lins), a definitividade, a irrecorribilidade e a executividade da sentença arbitral, e, ao final, sua constitucionalidade, reafirmada pela Suprema Corte.

 
(Fonte: O JUÍZO ARBITRAL NO BRASIL – Uma avaliação da eficácia da Justiça paraestatal autônoma para resolução de conflitos [Monografia - UCM/Supremo Concursos)
Alan Augusto Guimarães


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(a) BARBOSA, Rui. Questão Minas X Werneck. Obras Completas de Rui Barbosa. Volume XLV 1918 – Tomo IV e V. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980.
(b) OCTAVIO, Rodrigo. Minhas memórias dos outros. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira/MEC, 1979.
(c) SOUZA, Heitor. Arrendamento da estância hydro-mineral de Lambary. Belo Horizonte : Imprensa Oficial, 1915.

[1] Rui Barbosa e a Questão Minas X Werneck. In: Site Guimaguinhas, mai/2013. Disponível em: <https://goo.gl/qkTuFd >. Visitado em 8 jan. 2018.
[2] Questão Lambary - O instituto da arbitragem é questionado por Rui Barbosa. In: Migalhas, mar/2010. <https://goo.gl/Ctzoa>. Visitado em 21 fev. 2018
[3] VENÂNCIO FILHO, Alberto. Juízes e Tribunais – Perspectivas da História da Justiça no Brasil – O STF na República Velha.  [Palestra]. Disponível em: <https://goo.gl/3An8ED>. Visitado em 21 fev. 2018.
 

Referências

Mencionadas no texto.