Erros dos Dicionários
ERROS DOS DICIONÁRIOS
José Augusto Carvalho*
O Aurélio, versão em papel, teve seu início no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, organizado por Hildebrando de Lima, revisto por Manuel Bandeira e José Baptista da Luz. Em 1975, Aurélio Buarque lança o dicionário com seu nome na capa, e o nome anterior deixou de existir. A segunda edição ocorreu em 1986. Pouco depois, Aurélio lança o dicionário com o nome de Novo Dicionário da Língua Portuguesa, pela Editora Nova Fronteira. Depois da morte de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em 1989, familiares assumiram a edição do Dicionário com o nome de Aurélio Século XXI – O Dicionário da Língua Portuguesa. Em 1999 saiu a primeira edição em CD, mesmo ano em que saiu a 3ª edição do Dicionário em papel, a última com o selo da Nova Fronteira. A partir da 4ª edição, em 2009, o livro passou a ser editado pela Editora Positiva. Consulto a 4ª edição, já com a nova ortografia, em CD que saiu pela Positiva, de acordo com o Volp de 2009.
Mas o sucesso do dicionário não é proporcional à qualidade. Senão, vejamos.
No verbete ponto e vírgula, o dicionarista dá dois plurais: ponto e vírgulas e pontos e vírgulas, declarando preferir a primeira forma de plural (a pior, porque não se trata de nome composto, mas de dois nomes unidos pela conjunção) preconizada por Nélson Vaz, sem estabelecer os critérios de sua preferência.
A definição de cacófato (“Som desagradável, ou palavra obscena, proveniente da união das sílabas finais de uma palavra com as inicias da seguinte”) exclui como cacófatos expressões como “Maria não tem pretensões acerca dela”, “Eva coava café”, ou “Ataulfo Dias”, em que o som desagradável ou obsceno é formado por palavras inteiras, nos dois primeiros exemplos, e pelo final de uma palavra com a palavra seguinte inteira, no último exemplo. Além disso, o Dicionário informa que cacófato é sinônimo de cacofonia, mas o encontro de sons desagradáveis na cacofonia não implica sentido obsceno, nem inconveniente, que apenas o cacófato produz. Veja-se, a respeito, o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés ( 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1978, s.v. cacofonia).
Um exemplo de arbitrariedade é o verbete por-favor-me-pegue, mantido de maneira pouco científica desde a primeira edição em papel: “Na Ilha da Trindade, peixe de uns 30cm de comprimento, muito abundante, e que é pescado com balde pelos marinheiros que servem ali.” Segue-se um exemplo de Moacir C. Lopes, do romance Maria de Cada Porto. Ora, não consta nenhuma característica científica desse peixe, além do habitat na ilha e do comprimento. Não há o nome da espécie, nem o nome da família, nem o hábito alimentar, nem o nome científico por que deveria ser conhecido, como fez o dicionarista, por exemplo, no verbete sardinha: “ Designação comum a várias espécies de peixes actinopterígios, clupeiformes, isospôndilos, clupeídeos. Vivem aos cardumes e são utilizadas largamente, frescas ou industrializadas, na alimentação humana. Também se usam em óleos, farinhas e adubos. No rio Amazonas existem sete espécies de sardinhas verdadeiras. [Sin. lus.: manjua.]” O dicionarista apenas citou o nome vulgar do peixe citado por Moacir Lopes pela facilidade com que é pescado. Mas esse nome pode ter sido inventado pelo romancista, por direito de ficcionista. E não é a primeira vez que um escritor usa um nome inventado: Manuel Bandeira , no livro Andorinha, Andorinha (Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p.9), na crônica “Gosmilhos na pensão”,usou o nome “gosmilho” para batizar uma flor em um dos seus poemas, por informação falsa de um jardineiro de Petrópolis. E “gosmilho” simplesmente é nome que não existe.
A julgar pelo Dicionário Aurélio, podemos pressupor que, por nele estarem consignadas, ainda dizemos palavras como speaker” ou center-forward, e outros vocábulos ingleses, como short ou show, que poderiam estar registrados como seus substitutos já adotados à larga (como locutor e centro-avante) ou na sua forma gráfica portuguesa, como xou e xorte, já que escrevemos com x palavras oriundas do inglês começadas com sh, como xerife (sheriff) e xampu (shampoo) , embora a protoforma de xampu seja hindu. A exceção é chute (ing. shoot) já consagrada pela tradição.
Se formos ao verbete calvário, encontraremos a informação de que se trata da tradução do aramaico gulguta (“crânio”), sinônimo, portanto, de gólgota. Se formos ao verbete gólgota, lá encontraremos a informação de que se origina do aramaico golgolta (“crânio”). Fica a pergunta: qual é o étimo de gólgota? Gulguta ou golgolta?
O Aurélio apresenta variantes lusitanas tanto prosódicas (como combóio, no verbete comboio) quanto gráficas de muito vocábulos, como carácter e facto (correspondentes a caráter e fato, no Brasil), mas ignora faxe, saxe e foxe, que se usam em Portugal e que podem justificar o plural de seus correspondentes fax, sax e fox, de curso no Brasil, que o dicionarista informa serem invariáveis em número. Como o inglês box, grafado boxe, em português,com o plural regular boxes. Curiosamente, a 2ª edição do Aurélio, versão em papel, registrava os plurais foxes e saxes, para fox e sax. A 3ª edição, já a cargo dos herdeiros do dicionarista, só registra fox e sax como invariáveis.
Embora registre muitas palavras e siglas em inglês de uso no Brasil, como office-boy e www, deixa de registrar muitas outras também de uso generalizado, como motoboy (hibridismo) e htttp, por exemplo. Aliás, há muitas palavras que não se encontram no Aurélio, embora de uso corrente, como elencar, coocorrer, dentopalatal, edomita (povo bíblico que vivia ao sul do Mar Morto), monera (bactéria), etc. A preocupação com o inglês técnico fez esquecer o próprio vernáculo.
Quanto ao gênero de substantivos, além de dengue, que é registrado como de ambos os gêneros, o verbete cólera aparece apenas como feminino, embora tenha os dois gêneros quando designa a doença ( sinônimo de cólera-morbo, de dois gêneros).
No verbete bege, o Aurélio informa que se trata de um adjetivo de dois gêneros e dois números, vale dizer, invariável. Mas registra exemplo extraído do livro Os Barões da Candeia, de Ana Elisa Gregori, em que o adjetivo bege aparece no plural, contrariando a informação do verbete: “As meias grossas, beges, protegem as pernas brancas.” No verbete suarabácti, lê-se que se trata de nome masculino, mas, no verbete seguinte, suarabáctico, a palavra suarabácti é citada no feminino: “relativo à suarabácti”.
No verbete saliente, a explicação: “que avança ou sai para fora do plano a que está unido”. Como se fosse possível sair para dentro... Defender o pleonasmo vicioso “sair para fora”, sob a alegação do editor de que se pode sair para cima e para os lados, é esquecer que sair para cima ou para qualquer lado implica sempre e obviamente direção para fora.
No verbete explodir, o Aurélio informa, na última acepção, que explodir é verbo defectivo, “não conjugável na 1ª pessoa do sing. do pres. do ind. nem, portanto, no pres. do subj.” No entanto, ao lado do verbete, aparece a conjugação completa do verbo explodir, com todas as formas que o Dicionário declara inexistentes...
Logo que saiu a 3ª edição do Aurélio, Cláudio Abramo publicou no Suplemento Mais! Da Folha de São Paulo, em 23-01-00, um artigo intitulado “Dicionário, que horror”, em que tece críticas construtivas e procedentes aos dicionários Michaelis e Aurélio. A reação do editor do Aurélio, Paulo Geiger, no dia 13-02-00, foi a de atacar o articulista. Cláudio Abramo e o editor encerraram a “polêmica” no dia 05-03-00: aquele atacando a obra; este, tentando mostrar a eficiência dos lexicógrafos e do planejamento da obra. Remeto o leitor aos exemplares do jornal Folha de São Paulo, da época da polêmica, ou à seguinte página da Internet: http://sites.uol.com.br/cwabramo
A propósito, enviei, em março de 2002, um e-mail ao editor de obras de referência da Nova Fronteira, Paulo Geiger, a fim de alertá-lo de que o Minidicionário Aurélio tinha errado na divisão silábica de parapsicologia. Como se trata de uma palavra só, sem hífen, a divisão deve ser pa-rap-si..., mas o Miniaurélio ensina assim: pa-ra-psi... Basta lembrar, por exemplo, palavras como rapsódia, lapso, silepse, em que a divisão silábica recomendada oficialmente mantém as consoantes < ps > em sílabas distintas: lap-so, silep-se...
Paulo Geiger enviou-me por e-mail o seguinte argumento inconcebível num editor de obras de referência: “(...) a palavra psicologia se separa psi-co-lo-gi-a, e seria confuso e estranho (sic) separar foneticamente pa-rap-si-co-lo-gi-a, ainda mais que para também tem uma estrutura muito clara na composição com psicologia. É uma exceção (o grifo é meu) defensável pelo fato de ps estar no início da palavra, o que impede a separação do p e do s, como acontece em si-lep-se, ca-ta-lep-si-a, etc. De novo nessa área limítrofe há que respeitar critérios, mesmo que se discorde deles, pois sua origem não é desatenção, desrespeito à gramática ou a verdades estratificadas, etc., e sim uma aplicação consciente de um critério construído com lógica e bom senso.” (A transcrição é ipsis litteris.)
Ora, a divisão silábica proposta pelo Minidicionário só teria sentido se parapsicologia se escrevesse com hífen. Quanto à divisão silábica em psicologia, é óbvio que, por serem iniciais, as duas consoantes se mantêm juntas por não haver nenhuma vogal antes em que a primeira delas se apoie, como em mnemônica, tmese, pneu, e quejandos, que começam com duas consoantes juntas.
Além disso, o editor inventa teorias sem respaldo científico a que o consulente não tem acesso e põe-nas em prática no desrespeito às normas oficiais, por uma questão de estranho “bom senso” que o consulente ignora. O erro da divisão silábica de parapsicologia fica mantido em detrimento da norma, para manter uma coerência que só existe para os autores do dicionário, que deveriam saber, por dever de ofício, que um dicionário não é um livro de doutrina, nem tampouco uma gramática, e têm a obrigação de respeitar e não de mudar as normas gramaticais e ortográficas vigentes, ainda que delas discordem.
Não contente com essa confissão de desobediência às normas oficiais, o editor Paulo Geiger envia-me outro e-mail dizendo que o Minidicionário Houaiss e o Michaelis também fazem a mesma divisão silábica de parapsicologia, mantendo as consoantes < ps > na mesma sílaba, como se o erro de um dicionário pudesse justificar o de outro. O minidicionário de Evanildo Bechara também segmenta inadequadamente o vocábulo parapsicologia.
O Aurélio segue a metodologia antiga das gramáticas latinas de abonar verbetes com exemplos de escritores, como se o escritor tivesse que obedecer às regras gramaticais do dialeto prestigioso. Citar exemplos de escritores era uma atitude válida para o latim, porque não há maneira de saber como funcionava a sintaxe latina e o emprego de vocábulos latinos, a não ser consultando-se os textos de autores como Ovídio, Virgílio, César e Catullo, por exemplo. Mas esse método não funciona adequadamente quando se estuda uma língua viva, porque o objetivo de um escritor é escrever diferentemente dos outros, numa linguagem conotativa, subvertendo a sintaxe, como atestam depoimentos conscientes de bons escritores, como Autran Dourado (Cf. O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Record, 1982, p. 58-60) e até de bons gramáticos, como Celso Cunha (Ver: Uma política do idioma. Rio de Janeiro: São José, 1964, p. 19 e 22). É possível consultar textos não conotativos, não artísticos, para estudar a norma culta de uma língua viva. A norma culta portuguesa foi sedimentada pela linguagem jurídica, não pela linguagem literária. Eram os textos jurídicos que faziam as vezes de cartilhas de alfabetização (Cf. José Ariel Castro, no capítulo “Formação e desenvolvimento da língua nacional brasileira”, no vol. I da obra dirigida por Afrânio Coutinho. A literatura no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio/UFF, 1986, p. 272.) Nossos primeiros gramáticos e ortógrafos, como Fernão de Oliveira e Duarte Nunes de Leão, não citavam seus contemporâneos de labor poético. Suas observações nasceram do convívio com as pessoas cultas da época. Fernão de Oliveira, por exemplo, quase sempre, ao citar seus conterrâneos, como João de Barros ou Garcia de Resende, fazia-o para contestá-los.. Assim, parece-me inadequado citar escritores para abonar regras ou o emprego de palavras e verbos. A regência de um verbo como responder, em Machado de Assis, pode opor-se à empregada por outro autor de mesma grandeza, como Carlos Drummond de Andrade. Assim, embora o Dicionário de verbos e regimes de Francisco Fernandes conste da bibliografia do Aurélio, pelo menos nas versões anteriores em papel, os exemplos do emprego de usufruir e deparar, de autoria de Nélida Piñon e de Clarice Lispector, respectivamente, em verbetes próprios, desrespeitam a regência prescrita por Francisco Fernandes e pelos bons gramáticos contemporâneos. Por essa razão é que o Aurélio abonou um plural inexistente da palavra bege, calcado, como vimos, linhas atrás, num exemplo de uma escritora que não tem compromisso com a gramática normativa, mas com a própria arte.
Os elementos significativos que fazem parte da rede de relações chamada língua se chamam formas. Formas livres são as que se podem pronunciar isoladamente, constituindo-se num enunciado completo, como livro, caneta, pasta. Formas presas são as que se associam às formas livres e não se podem pronunciar separadamente, como o {–s} final de livros, que significa “mais de um”, ou como as terminações verbais. Formas dependentes são os elementos átonos que dependem de outro vocábulo, mas não se prendem diretamente a ele, como os pronomes pessoais átonos que podem pronunciar-se antes, depois ou no meio do verbo: eu te amo, amo-te, amar-te-ei.
As formas livres, presas ou dependentes se chamam também morfemas. Os morfemas são representados entre chaves. Assim, {-a} é o morfema do feminino. Os sufixos e os prefixos são morfemas, são formas presas. O que caracteriza o morfema, ainda que não possa ser pronunciado isoladamente, como o {–s} que marca o plural, é o fato de ele ser dotado de significação. Há línguas em que, além do prefixo (que se acrescenta no início de uma forma base) e do sufixo (que se acrescenta no fim de uma forma base), há o infixo, que se acrescenta no meio da palavra base. Na língua iana ou ianam (do grupo ianomâmi), por exemplo, o infixo {-ru} indica plural: kuwi (curandeiro) – kuruwi (curandeiros). Em mísquito, língua indígena do Panamá, a noção de posse é indicada por infixos: napa (dente) – naipa (meu dente) - nampa (teu dente).
Chama-se vogal ou consoante de ligação o fonema que se acrescenta entre a forma base e o sufixo para facilitar a pronúncia. Se acrescentamos o sufixo {–eira} à forma base licor, temos licoreira. Se, no entanto, à palavra café acrescentarmos o sufixo {–eira}, teremos de pôr um t antes: cafeteira. O t não é um morfema, porque não tem significado, e sua função é apenas fônica. Trata-se de uma consoante de ligação. Da mesma forma, se acrescentarmos a forma cultura à forma café, teremos cafeicultura. A vogal i é uma vogal de ligação. Tem apenas função de eufonia, não tem significação.
O dicionário Aurélio, no verbete próprio, define infixo adequadamente como um afixo (morfema) interno, mas exemplifica com as consoantes de ligação de chaleira e motorneiro. Ora, as consoantes e vogais de ligação não podem ser infixos, porque não são morfemas, não têm significação. Felizmente, o Houaiss (CD da Ed. Objetiva, 2009) não endossa essa lição. Não existe infixo em português.
O Houaiss, no verbete gol, informa que o plural gols é um “barbarismo consagrado pelo uso” e ensina que os plurais adequados são goles (ô), golos (ô) e gois. Golos é usado em Portugal, mas gois só existe na cabeça dos que participaram da elaboração do dicionário. Todas as palavras oxítonas terminadas em –ol têm a vogal aberta, no singular e no plural: sol, anzol, terçol, lençol, futebol. Assim, a palavra gol, com vogal fechada, não é barbarismo, mas apenas a adaptação gráfica do goal inglês. O plural gols é legítimo, porque continua sendo a palavra inglesa adaptada graficamente. Gois, com vogal fechada, é que é barbarismo, uma vez que, se fosse palavra portuguesa, teria de ter a vogal aberta, como a palavra rol, com a vogal aberta, oriunda do francês rôle, com vogal fechada. Rol é palavra legitimamente portuguesa, porque tem a vogal aberta.
No verbete adequar, o Dicionário Aurélio informa que se trata de um verbo defectivo, conjugável apenas nas formas arrizotônicas, isto é, nas formas em que a acentuação tônica recai nas desinências e não na raiz. Assim, o dicionário conjuga o verbo adequar apenas com duas formas no presente do indicativo: nós adequamos, vós adequais. O Dicionário Houaiss, contrariando bons manuais de conjugação e boas gramáticas, conjuga o verbo adequar em todos os tempos e pessoas: eu adéquo, tu adéquas, etc. Domingos Paschoal Cegalla, em seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, s.v. adequar, adequar-se), ensina que, se adequar não fosse defectivo, sua conjugação deveria ser como a do verbo recuar, com a acentuação tônica no U. E conclui: “Não existem as formas adéqua, adéquam, com e tônico.
O Aurélio registra o verbete afro como adjetivo, sem indicação de gênero, o que pressupõe tratar-se de adjetivo variável, ou como substantivo apenas masculino. O Houaiss registra afro como adjetivo e substantivo apenas masculino, e exemplifica: moda afro, cabelo afro, comidas afro (apesar de registrar o plural afros, para designar antigo povo da África). Essa é a orientação espúria do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) que também registra afro como adjetivo e substantivo apenas masculino (portanto invariável). O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa registra afro tanto como adjetivo quanto como substantivo variável (afro, afra). O Dicionário de Domingos Paschoal Cegalla, acima mencionado, registra o verbete afro também como adjetivo e substantivo, flexionado, com os seguintes exemplos: carnaval afro, ritos afros, músicas afras.
A propósito do Volp, somos todos reféns de suas imprecisões ou inadequações, sobretudo no que diz respeito ao emprego do hífen, que é um verdadeiro samba do crioulo doido. Nos pares abaixo, de formação idêntica, apenas o primeiro leva hífen; e o segundo, não. Vejamos: pé-de-meia, pé de moleque; para-choque, paraquedas; perde-ganha, vaivém; cachorro-quente, elefante branco (coisa incômoda); infantojuvenil, maníaco-depressivo; ano-novo, ano velho; norma-padrão, desvio padrão; bom-senso, bom gosto; pronto-socorro, pronto atendimento; carne-seca, carne viva... Qual é a lógica?
Siglas se leem sempre letra por letra e todas se escrevem com maiúsculas: PMDB, PTB, UFRJ, CPMF, etc. Acrônimos, ao contrário, se leem como verdadeiros substantivos da língua (neologismos): se o substantivo é próprio, apenas a primeira letra é maiúscula: Otan, Nasa, Vasp, Ufes, Bradesco, Petrobras, Volp, etc. Se o substantivo é comum, todas as letras são minúsculas: radar (radio detecting and ranging), sonar (sound navigating and ranging), laser (light amplification by stimulated emission of radiation), aids ou sida (síndrome da imunodeficiência adquirida), etc. Se o acrônimo tem três letras, todas se escrevem em versal, mesmo que não sejam nomes próprios: ONU, TAP (Transportes Aéreos Portugueses), ECA (Escola de Comunicação e Artes), LER (lesão por esforço repetido), etc.. Os dicionários definem adequadamente o que é sigla e o que é acrônimo, mas erram nos verbetes que representam acrônimos ou siglas. O Aurélio, embora registre aids, com minúsculas, registra SIDA e UFES; O Houaiss registra apenas sida, com minúsculas, mas, embora defina acrônimo e sigla adequadamente, no verbete sigla registra Petrobrás entre outros exemplos.
A expressão latina statu quo é parte da expressão maior in statu quo ante, que significa “no estado em que (estava) antes”. O correto é statu quo, sem o s final porque se trata do ablativo, como ensina Paulo Rónai no seu belo livro Não perca o seu latim (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, com exemplo de Carlos Drummond de Andrade, extraído do texto “A comemoração de tudo”, do livro Cadeira de balanço: “Voltamos ao statu quo.”). Os dicionários, contudo, só registram a forma inadequada status quo. O nominativo, status, com s final, só se usa isoladamente e significa a posição ou a situação de um indivíduo num grupo. Não é de estranhar essa lição esdrúxula, já que o latim é frequentemente mal-empregado na linguagem jurídica. Na literatura jurídica, “a expressão de cujus” é utilizada como sinônimo de “testador”.O Houaiss e o Aurélio dão-na como sinônimo de “falecido”. Trata-se de parte da frase “de cujus successione agitur”, isto é, “(aquele) de cuja sucessão se trata”. Ora, em latim, cujus é genitivo do pronome relativo qui. Nunca foi substantivo comum. Infelizmente, já é expressão consagrada pela tradição e faz parte da metalinguagem jurídica...
Parece-me que pretendem atualizar o Aurélio com o acréscimo de palavras de uso recente. Creio que não é o uso generalizado que deva orientar a inclusão de um verbete num dicionário de língua. A moda passa. O que Mattoso Câmara Jr. chamou de “espírito de campanário”, traduzindo o “esprit de clocher” saussuriano, funciona na língua como uma reação ao princípio de intercurso. É essa reação a principal responsável pela adaptação de vocábulos estrangeiros à feição e ao gênio da língua, a reprimir as influências estranhas e a manter-se fiel à tradição e à índole da língua.
*José Augusto Carvalho é mestre em Linguística pela Unicamp, doutor em Letras pela USP, e autor de um Pequeno Manual de Pontuação em Português (1ª edição, Bom Texto, do Rio de Janeiro, 2010, 2ª edição, Thesaurus, de Brasília, 2013); de uma Gramática Superior da Língua Portuguesa (1ª edição, Univ. Federal do ES, 2007; 2ª edição, Thesaurus, de Brasília, 2011); do opúsculo Estudos sobre o pronome (Brasília: Thesaurus, 2016) e da coletânea de artigos Estudos de língua portuguesa (São Paulo: Cajuína, 2019), entre outros livros.