Ilustração: Capa do livro Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, em que José Cândido de Carvalho imortalizou Borjalino Ferraz, personagem do conto A vírgula não foi feita para humilhar ninguém.
Virgular não é ofício de "pequena corretagem"
Extraído da Coletânea TEXTOPr@tico
Mandamento 5
Se o ponto final é o mais completo, a vírgula é, incontestavelmente, o mais difícil...
(Alexandre Passos, A Arte de Pontuar (notações sintáticas)
(tornar-se mito) foi o que ocorreu com a pausa na língua oral que fez nascer a
vírgula na língua escrita: a vírgula é uma pausa breve – eis o fato;
pontuar de ouvido e virgular para respirar – eis o mito.
(Antônio Carlos Guimarães – O ofício de virgular)
A vírgula é a principal dúvida de todos os redatores. Ela não serve apenas para marcar pausas ou momentos de respiração, como se acredita no senso comum.
É principalmente um fator sintático, já que une e separa elementos
de uma oração, ordenando-os de forma lógica.
(Lucília H. do Carmo Garcez, Técnica de Redação)
O emprego da vírgula é deficiência unânime dos brasileiros.
(Prof. Dad Squarisi, da Coluna Dicas de Português, Correio Braziliense)
Nos monumentos escritos da História, ou da lei, um ponto, ou uma vírgula, podem encerrar os destinos de um mandamento, de uma instituição
ou de uma verdade.
(Rui Barbosa, Réplica)
Não é necessário para falsificar uma escritura mudar nomes, nem palavras, nem cifras, nem ainda letras; basta mudar um ponto, ou uma vírgula.
Perguntam os Controversistas, se assim como na Sagrada Escritura
são de Fé as palavras, serão também de fé os pontos, e vírgulas?
E respondem que sim; porque os pontos, e vírgulas, determinam
o sentido das palavras; e variados os pontos, e vírgulas,
também o sentido se varia.
(Padre Antônio Vieira, Sermões)
(Alexandre Passos, A Arte de Pontuar (notações sintáticas)
(tornar-se mito) foi o que ocorreu com a pausa na língua oral que fez nascer a
vírgula na língua escrita: a vírgula é uma pausa breve – eis o fato;
pontuar de ouvido e virgular para respirar – eis o mito.
(Antônio Carlos Guimarães – O ofício de virgular)
A vírgula é a principal dúvida de todos os redatores. Ela não serve apenas para marcar pausas ou momentos de respiração, como se acredita no senso comum.
É principalmente um fator sintático, já que une e separa elementos
de uma oração, ordenando-os de forma lógica.
(Lucília H. do Carmo Garcez, Técnica de Redação)
O emprego da vírgula é deficiência unânime dos brasileiros.
(Prof. Dad Squarisi, da Coluna Dicas de Português, Correio Braziliense)
Nos monumentos escritos da História, ou da lei, um ponto, ou uma vírgula, podem encerrar os destinos de um mandamento, de uma instituição
ou de uma verdade.
(Rui Barbosa, Réplica)
Não é necessário para falsificar uma escritura mudar nomes, nem palavras, nem cifras, nem ainda letras; basta mudar um ponto, ou uma vírgula.
Perguntam os Controversistas, se assim como na Sagrada Escritura
são de Fé as palavras, serão também de fé os pontos, e vírgulas?
E respondem que sim; porque os pontos, e vírgulas, determinam
o sentido das palavras; e variados os pontos, e vírgulas,
também o sentido se varia.
(Padre Antônio Vieira, Sermões)
Num texto clássico (A vírgula não foi feita para humilhar ninguém), o grande Joaquim Cândido de Carvalho imortalizou Borjalino Ferraz, um servidor público, escriturário de uma Divisão de Rendas, que acabou despedido do emprego por ter aprendido a colocar bem as vírgulas, mas... em ofício de pequena corretagem!
Este artigo é uma reflexão sobre aquela notação, e o seu título uma homenagem a José Cândido, pois continuamos sendo ainda hoje, numa "divisão de rendas" em que praticamos nossos ofícios, novos Borjalinos em face da antiga esfinge – a vírgula.
Modernamente é tendência no campo dos textos funcionais e práticos das repartições e empresas escritos mais objetivos, frases curtas, vocabulário mais leve, predomínio da ordem direta com pouca pontuação intermediária. Registre-se, contudo, que nos textos didáticos, expositivos, ou nos arrazoados, a virgulação sempre é mais generosa, geralmente motivada pela entoação. Mas ainda assim deve ficar muito distante dos modelos seculares.
Depois de longa confusão, em nossos dias, parece também fixado que o sentido da virgulação prende-se menos às pausas e mais à organização sintática, estando o seu uso regulado pela sintaxe de ordem – a divisão da sintaxe que cuida da arrumação da frase. Enfocada, assim, pelo ângulo correto de aplicação – a organização oracional – , ressurge também a importância da sintaxe, e, em especial, da análise sintática, para compreensão do modo certo de apor vírgulas.
Nada obstante isso, a virgulação, ainda, é campo inçado de subjetividades e sempre surgem divergências entre os gramáticos. E “pequenas questões virguleiras” tornam-se casos barulhentos, como se verá do breve relato que se segue.
Já há séculos, o Padre Antônio Vieira mostrava num de seus célebres sermões como a vírgula pode falsificar uma escritura. E isso tinha tanta importância que, informa o grande mestre de nossas letras, “havia um Conselho chamado dos Masoretas, cujo ofício era conservar incorruptamente em sua pureza a pontuação da Escritura.”
Apesar desse zelo de Vieira com a pontuação escriturística, no geral os clássicos não pontuavam com o rigor das regras, que, a bem da verdade, só foram sistematizadas bem tarde na língua portuguesa.
No Brasil, a vírgula não ficou de fora das controvérsias gramaticais que fizeram história. Rui Barbosa, por exemplo, que, à época da redação do Código Civil, discutiu longamente com Ernesto Carneiro Ribeiro, reclamou deste: “Até a pontuação do trecho não lhe escapou do arpéu. Acha-me vírgula de mais” (Rui Barbosa, Réplica, apud Edmundo Dantès Nascimento). Essa polêmica famosa está registrada nas obras daqueles dois grandes homens (Réplica, de Rui Barbosa, e Tréplica – A Redação do Projeto do Código Civil e a Réplica do Dr. Ruy Barbosa, do Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro).
Conta-nos Alexandre Passos (in A Vírgula, Ediouro, s/d) que uma vírgula colocada por Rui, antes da conjunção ou, quando esta liga palavra ou frases simples e curtas (como neste passo de fr. Luís de Souza: Ou faz anjos, ou demônios.) rendeu muita discussão entre os famosos contendores. Só a lista de citações dos autores clássicos confrontados no embate deve ter sido de laudas e laudas...
Claro que fato como esse é patrimônio cultural que a nossa breve memória não deve relegar ao limbo da história, como se costuma fazer. Mas é evidente que discussões dessa ordem hoje não têm mais cabimento, porque “não estamos mais no tempo das civilizações sem pressa das civilizações agrárias, mas no tempo acelerado da civilização tecnológica”. E, dessa forma, no mundo contemporâneo “é natural, pois, que os homens sensatos se distanciem (...), concluindo sadiamente que isso é ocupação de ociosos.”
Despontam, contudo, aqui e ali, rusgas gramaticais sobre virgulação. Veja-se que Celso Pedro Luft (A Vírgula, Ática, 1998, p. 25), discordando de Rocha Lima e Celso Cunha, faz leve menção ao fato de aqueles dois respeitados gramáticos darem “como obrigatória” a vírgula para “indicar a supressão de uma palavra (geralmente o verbo) ou de um grupo de palavras”. Tal fato, que a mim me pareceu apenas o registro de uma discordância doutrinária, foi visto de modo diverso pelo prof. Cipro Neto (Inculta e Bela 2, Publifolha, 2001, p. 107). Mas é, como assinala Leodegário de Azevedo Filho (Ensaios de Linguística e Filologia), “a falta do hábito universitário da crítica científica em nosso meio” que faz as pessoas se abespinharem por tão pouco, à conta de pôr ou não pôr uma que outra vírgula, num campo no qual evidentemente não se deve especar em regras definitivas.
Vejamos alguns casos de colocação de vírgulas em que os nossos gramáticos mais tradicionais assumem posição contrária, para termos compreensão plena deste fato: não há regras absolutas em virgulação.
O respeitado prof. Adriano da Gama Kury põe taxativamente entre os “casos em que não se deve usar a vírgula” (Ortografia, Pontuação, Vírgula, MEC/FENAME, 1982, p. 71) o seguinte exemplo:
Este artigo é uma reflexão sobre aquela notação, e o seu título uma homenagem a José Cândido, pois continuamos sendo ainda hoje, numa "divisão de rendas" em que praticamos nossos ofícios, novos Borjalinos em face da antiga esfinge – a vírgula.
Modernamente é tendência no campo dos textos funcionais e práticos das repartições e empresas escritos mais objetivos, frases curtas, vocabulário mais leve, predomínio da ordem direta com pouca pontuação intermediária. Registre-se, contudo, que nos textos didáticos, expositivos, ou nos arrazoados, a virgulação sempre é mais generosa, geralmente motivada pela entoação. Mas ainda assim deve ficar muito distante dos modelos seculares.
Depois de longa confusão, em nossos dias, parece também fixado que o sentido da virgulação prende-se menos às pausas e mais à organização sintática, estando o seu uso regulado pela sintaxe de ordem – a divisão da sintaxe que cuida da arrumação da frase. Enfocada, assim, pelo ângulo correto de aplicação – a organização oracional – , ressurge também a importância da sintaxe, e, em especial, da análise sintática, para compreensão do modo certo de apor vírgulas.
Nada obstante isso, a virgulação, ainda, é campo inçado de subjetividades e sempre surgem divergências entre os gramáticos. E “pequenas questões virguleiras” tornam-se casos barulhentos, como se verá do breve relato que se segue.
Já há séculos, o Padre Antônio Vieira mostrava num de seus célebres sermões como a vírgula pode falsificar uma escritura. E isso tinha tanta importância que, informa o grande mestre de nossas letras, “havia um Conselho chamado dos Masoretas, cujo ofício era conservar incorruptamente em sua pureza a pontuação da Escritura.”
Apesar desse zelo de Vieira com a pontuação escriturística, no geral os clássicos não pontuavam com o rigor das regras, que, a bem da verdade, só foram sistematizadas bem tarde na língua portuguesa.
No Brasil, a vírgula não ficou de fora das controvérsias gramaticais que fizeram história. Rui Barbosa, por exemplo, que, à época da redação do Código Civil, discutiu longamente com Ernesto Carneiro Ribeiro, reclamou deste: “Até a pontuação do trecho não lhe escapou do arpéu. Acha-me vírgula de mais” (Rui Barbosa, Réplica, apud Edmundo Dantès Nascimento). Essa polêmica famosa está registrada nas obras daqueles dois grandes homens (Réplica, de Rui Barbosa, e Tréplica – A Redação do Projeto do Código Civil e a Réplica do Dr. Ruy Barbosa, do Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro).
Conta-nos Alexandre Passos (in A Vírgula, Ediouro, s/d) que uma vírgula colocada por Rui, antes da conjunção ou, quando esta liga palavra ou frases simples e curtas (como neste passo de fr. Luís de Souza: Ou faz anjos, ou demônios.) rendeu muita discussão entre os famosos contendores. Só a lista de citações dos autores clássicos confrontados no embate deve ter sido de laudas e laudas...
Claro que fato como esse é patrimônio cultural que a nossa breve memória não deve relegar ao limbo da história, como se costuma fazer. Mas é evidente que discussões dessa ordem hoje não têm mais cabimento, porque “não estamos mais no tempo das civilizações sem pressa das civilizações agrárias, mas no tempo acelerado da civilização tecnológica”. E, dessa forma, no mundo contemporâneo “é natural, pois, que os homens sensatos se distanciem (...), concluindo sadiamente que isso é ocupação de ociosos.”
Despontam, contudo, aqui e ali, rusgas gramaticais sobre virgulação. Veja-se que Celso Pedro Luft (A Vírgula, Ática, 1998, p. 25), discordando de Rocha Lima e Celso Cunha, faz leve menção ao fato de aqueles dois respeitados gramáticos darem “como obrigatória” a vírgula para “indicar a supressão de uma palavra (geralmente o verbo) ou de um grupo de palavras”. Tal fato, que a mim me pareceu apenas o registro de uma discordância doutrinária, foi visto de modo diverso pelo prof. Cipro Neto (Inculta e Bela 2, Publifolha, 2001, p. 107). Mas é, como assinala Leodegário de Azevedo Filho (Ensaios de Linguística e Filologia), “a falta do hábito universitário da crítica científica em nosso meio” que faz as pessoas se abespinharem por tão pouco, à conta de pôr ou não pôr uma que outra vírgula, num campo no qual evidentemente não se deve especar em regras definitivas.
Vejamos alguns casos de colocação de vírgulas em que os nossos gramáticos mais tradicionais assumem posição contrária, para termos compreensão plena deste fato: não há regras absolutas em virgulação.
O respeitado prof. Adriano da Gama Kury põe taxativamente entre os “casos em que não se deve usar a vírgula” (Ortografia, Pontuação, Vírgula, MEC/FENAME, 1982, p. 71) o seguinte exemplo:
As árvores, os animais, os homens parecem renascer na primavera,
doutrinando que num sujeito composto, o último dos termos coordenados não se separa por vírgula do seu verbo.
Há, todavia, posições divergentes. Vejamos.
Luiz Antonio Sacconi (Nossa Gramática – Teoria e Prática, Atual Editora, 1994) também é taxativo – em sentido oposto :
Num sujeito composto em que não se usa a conjunção “e”, a vírgula também é obrigatória entre o último sujeito e o verbo. Ex.:
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Psicólogos, sociólogos, antropólogos , foram chamados a opinar sobe o assunto.
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Psicólogos, sociólogos, antropólogos , foram chamados a opinar sobe o assunto.
A seu turno, o prof. Napoleão Mendes de Almeida (Gramática Metódica da Língua Portuguesa, Saraiva, 1979) diz ser caso optativo de vírgula. E Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa) transcreve exemplos da mesma espécie em que a vírgula também ficou de fora. Antenor Nascentes, no O Idioma Nacional, escreve trechos e trechos dessa forma, apondo vírgulas.
É também ilustrativo o caso da subordinada adverbial na ordem direta, não importando que seja longa ou curta. Uns (Rocha Lima, por exemplo) dão a vírgula como obrigatória sempre. Outros (a maioria, autores mais modernos) dizem apenas que, nesses casos, a virgulação é sempre correta, mas não falam em vírgula obrigatória. E alguns outros, ainda, dão essa mesma regra, mas excluem as adverbiais comparativas (alguns) ou comparativas e conformativas (outros).
Registro esses casos apenas para mostrar as dificuldades com que nós, não especialistas, esbarramos em certas situações, por um lado; de outro, para ressaltar que em matéria de tantos pontos subjetivos ninguém deve pontificar e doutrinar com absolutismo. Posições arbitrárias, inflexíveis, imperiosas não podem ter vez em matéria gramatical tão fluida como o emprego da vírgula. Policiamento gramatical, então, esse muito menos.
A verdade é que em redação a vírgula não é ponto dos mais fáceis – até porque envolve análise sintática, lição que costuma assustar pois geralmente é mal cuidada em nossas gramáticas. A virgulação, de qualquer modo, tem uma certa sistematização que merece estudo e cuidados.
O caro mestre das vírgulas, José Cândido de Carvalho, há de compreender, mas, ainda, entre nós, virgular não é ofício de “pequena corretagem”...