Amabilidades ortográficas e o espírito das reformulações linguísticas

Uns anos atrás tivemos uma breve reformulação da língua portuguesa oficial guiada, fundamentalmente, pelo propósito de homogeneizar a língua escrita nos diversos países. Tal objetivo é desejável por facilitar a comunicação entre os povos, sendo essa a finalidade da linguagem.

Uma vez que as línguas evoluem ao longo do tempo, é quase certo que ainda veremos outras reformulações do português. Sugiro que uma nova característica, não levada em conta no último acordo, venha a ser objeto de consideração em modificações futuras: a amabilidade ortográfica e gramatical.

Amabilidades favorecem o relacionamento entre as pessoas e são geral e costumeiramente recomendáveis, mesma razão pela qual as amabilidades linguísticas também o são.

Mas, no que consiste uma amabilidade linguística? Creio que aspectos facilitadores e que evitem constrangimentos se encaixam na designação, exemplificarei. Acentos, em geral, facilitam a pronúncia das palavras. A grafia de certas palavras permite mais de uma leitura; a determinação do fonema /é/, ou /ê/, por exemplo, frequentemente não se encontra explícita na grafia da palavra, sendo necessário, em casos assim, que o leitor conheça de antemão sua pronúncia. A acentuação, em tais casos, constituiria uma gentileza, uma amabilidade para com o leitor, que não correria, em decorrência disso, o risco do constrangimento eventual da pronúncia equivocada.

Com isso em mente, creio que a permissão para a acentuação facultativa das palavras consistiria uma cortesia bastante desejável, que nenhum mal causaria à compreensão dos textos, e que facilitaria para muitos a sua leitura. Assim, sugiro que palavras como “leso”, “aceso”, “gostos”, “poças” e muitas outras possam ser facultativamente acentuadas.

A retirada do trema da grafia em português, no entanto, encaminhou a língua na direção exatamente oposta, constituindo essa “facilitação” uma espécie de aspereza, uma atitude ríspida e quase grosseira. Desde a promulgação do acordo ortográfico, o leitor deve conhecer previamente a pronúncia de palavras como “líquido”, “aquífero”, “aguentar” e todas as outras grafadas com “que”, “qui”, “gue”, “gui”, ou se arrisca a pronunciá-las equivocadamente, havendo a necessidade de consultar, fora do texto, sua pronúncia correta. Acresce que o trema era governado por uma boa regra, sem nenhuma exceção; deve retornar à língua antes que os teclados inviabilizem ou dificultem essa determinação.

Com o mesmo intuito, sugiro também a gentileza de se permitir, facultativamente, a introdução de acentos indicativos da pronúncia das palavras. A readmissão da facultatividade dos acentos consistiria uma amabilidade que permitiria a gentileza de informar ao leitor, especialmente aos neófitos, a pronúncia das palavras grafadas.

Contrariamente às amabilidades, certas reformulações da língua podem conduzir a resultados bastante rudes. Exceções às regras são ásperas, dificultam, devem ser evitadas. Creio que a retirada do trema também acrescentou certa aspereza à língua, impedindo a amabilidade de informarmos nossos leitores sobre a pronúncia de algumas palavras. Tratou-se de atitude pedante e rude, com o objetivo de ressaltar erros eventualmente cometidos pelos leitores, levados assim a constrangimentos por defensores de uma cultura frívola e presunçosa. As normas gramaticais e ortográficas deveriam ter por objetivo acolher o leitor, não espicaçá-lo. Proponho que a rudeza de tais diretrizes venha a ser abominada e eliminada de futuras discussões sobre reformulações da língua, e que, contrariamente a essas, novas orientações, gentis e amáveis se imponham.