Gramática à velocidade da luz?

Verdade seja dita e reconhecida: a gramática nasceu para apanhar. Não apanha, entretanto, por ter aquela índole gingada, meio que devassa e submissa de mulher de malandro, como poderia suspeitar a princípio Nelson Rodrigues. Apanha, antes, com a nobreza de um fidalgo instado ao combate para defender a honra de sua mui digna Dulcinéia. Serve em sua bravura a causa justíssima, com o altruísmo desinteressado dos santos, em batalha da qual não se lhe podem negar os devidos louvores. A valente gramática empenha-se, resignada e diuturnamente, em uma peleja na qual apanha na rua e apanha em casa, apanha na escola e no serviço, nos jornais e telejornais, nos discursos e na (principalmente) internet, nas revistas e nos letreiros, apanha tanto no Brasil quanto na Espanha como na luxuosa e cosmopolita “Times Square, New York, NY” ou na desconhecida, bucólica e provinciana cidadezinha de Serra da Saudade, encravada nos cafundós de Minas Gerais. Apanha aqui e acolá e em todas as partes do mundo. Seja ela defensora de qual brasão linguístico for: ela sempre apanha.

Um veredito desses, dado por uma pessoa como eu, que nunca foi lá um grande íntimo da gramática, pode soar um tanto quanto suspeito. Pode parecer como uma vingança orquestrada e levada a cabo pela necessidade instintiva de encontrar algum tipo de recompensa planejando seu assassinato social ou regozijando-se diante das agruras enfrentadas pelo inimigo e degustando internamente as sovas que a gramática leva mundo afora. Mas não é.

E não o é pelo fato de que a gramática, na verdade, não é inimiga constituída sobre ninguém. Ela não apanha por ser nociva: apanha, justamente, por manter, de forma irredutível, sua nobreza diante dos ataques sofridos, salvaguardando, ela sim, o idioma da nocividade que o caos gerado pela falta de regras claras e fixas poderia trazer. Na realidade esta é uma notícia embebida quase em tristeza, envolta em uma embalagem tragicômica que em seus motivos revela a sina maior de todo herói e da qual a polivalente gramática não escapa: a disposição de sua integridade para salvaguardar algo maior do que si, despindo-se nesse processo de quaisquer traços egoísticos de individualidade.

A gramática – qualquer gramática -, é elaborada no intuito de normatizar o idioma que representa em uma estrutura fixa que defina e sedimente suas características próprias, estabelecendo assim uma regra que a priori podemos considerar quase como imutável. Mas é nesse “quase” que reside um dos maiores problemas e talvez mesmo o cerne dessa batalha dos séculos: em sua quase imutabilidade (e podemos considerar a gramática praticamente imutável pela lentidão anêmica com que responde ao estímulo de uma linguagem inerentemente dinâmica) a gramática, a grosso modo, torna-se amorfa, pois sua estruturação sempre será dissonante dessa estruturação dinâmica que rege a linguagem popular que por sua vez é a única fornecedora da matéria-prima utilizada por ela para construir suas normas – e isso a torna irreconhecível, e, portanto, sem forma para o popular. Ela é encastelada pelos seus idealizadores em volumosos e intrincados tomos, e quando, coitada, tem de encarar a realidade das ruas, é com coragem heroica que se lança à boca e pena da população para ser destroçada.

Ela vai ganhar sua desforra em dias de prova, como as dos famigerados concursos públicos e vestibulares, único dia no qual consegue atingir a linguagem popular com toda a força de seus exércitos e peso de sua espada. Tirando isso, é quase desamparada em sua jornada pelo zelo normativo.

A gramática normativa faz-se necessária por motivos diversos. Sua rigidez e força, sua robustez secular, os conhecimentos sintetizados em seu compêndio, são sustentáculo e escudo para qualquer idioma pátrio continuar sendo a face distintiva de uma nação. O que a faz perder a batalha nas ruas é a leniência e a discordância egocêntrica que impera na classe dos gramáticos. Vivemos numa época onde as informações já não esbarram mais no limite do espaço e/ou tempo para atingir as pessoas e, portanto, tem um espectro de distorção praticamente nulo em comparação a poucas décadas atrás, gerando reações e formando opiniões instantaneamente, o que, inevitavelmente, acaba impactando diretamente na velocidade com a qual um idioma se metamorfoseia. A comunicação é uma das áreas de tecnologia que mais cresce e na qual somente o Brasil investirá cerca de cento e vinte e cinco bilhões de dólares em 2015. As redes sociais e os aplicativos de mensagens geram bilhões de mensagens por dia. E é nesse cenário altamente volúvel do ponto de vista linguístico que palavras e expressões são alçados ao estrelato ou criados num átimo e em questão de dias saem da inexistência ou do anonimato para então voltar a cair com a mesma velocidade no lugar-comum. E é nesse cenário, também, que a gramática vive e se desenvolve. Apanha, lógico, e muito, pois essa cultura da comodidade travestida de erudição, já um tanto quanto decana e anacrônica, não a promove, mas sim a denigre diante da população e a destituí de todo seu mérito e glória aos olhos dos leigos. Enquanto o universo linguístico urbano se molda com a mesma rapidez da evolução tecnológica, os gramáticos ainda estão, como Jecas, a cismar; sentados em banquinhos de três pernas e com preguiça de lhes meter uma quarta.