FELIZ NATAL...É O QUE CONTA

POR CONTA DO NATAL

Pedro Arcanjo conhecera desde o berço o rigor das intempéries sulinas. O minuano se esgueirava pelas frinchas, sussurrando acalantos pampeanos. Impetuosamente, como potro indomável, rejeitando freios, alardeava a soberania através de silvos viripotentes. O arvoredo curvava-se à passagem do centauro platino. Pelo embate, lembrava um ‘acerto de contas’. Não se deixava enlear, e escapulia pelas frestas na cobertura de santa fé ou toscas telhas de barro. A relva, tiritante, emponchava-se na alvura. Como diziam: “Está de renguear cusco”. A cachorrada enrodilhava-se à volta do braseiro. A geada espelhara pequenas poças. Uma fumacita tímida redemoinhava desejando voltar à chaminé. O café e o amargo amainavam o ar enregelado. Ceroula comprida, camiseta baixeira, meias grossas, camisa de lã – estilo lenhador – , boina castelhana. Refugiar-se nos pelegos? Por quê? ‘Afinal de contas’ a vida continua.

O primeiro choro do piá, em pleno inverno, foi reação a uma generosa palmada que Juvência, há mais de trinta anos, chamava de despertar à vida. A parteira ‘perdera a conta’ de quantos viventes vieram ao mundo através de suas mãos, que agora mostravam sinais do tempo. Numa caixa de sapatos guardava fotografias dos afilhados. ‘Vezes sem conta’ se propôs a fazer um álbum, mas... Não impunha preço, mas aceitava, de bom grado, ‘por conta’ das lides ginecológicas, um bácoro gordito, quem sabe duas ou três galinhas de bom porte, talvez queijo e linguiça bem temperada. Celestina trazia na face a marca da sobriedade. Não que fosse alcoviteira, contudo o que se desejasse saber, bastava perguntar-lhe. Sem muitos rodeios, ‘prestava contas’ da intrigalhada interiorana.

Em homenagem ao avô paterno, o rebento fez-se Pedro. Arcanjo foi sugestão da mãe, em cumprimento a uma promessa a Nossa Senhora do Bom Parto. Inspirara-se, em tempos idos, numa mensagem natalina, comentada no grupo escolar pela inesquecível professora Maria do Carmo. Acreditava que a benção alcançada ‘recebera por conta’ de sua fé.

Considerando um parto na cidade, saia ‘em conta’ a paridela e era confiável. Descendente de bugres, a “comadre” Celestina trazia na face a marca da sobriedade. De tudo sabia sem ser alcoviteira. A mãe cumpria promessa a Nossa Senhora do Bom Parto.

Leôncio, pai de Pedro, herdara, na região fronteiriça, um pedacito de terra – pouco mais do que cinco hectares, três vacas de leite e uma modesta ferraria. A faina era de seu agrado: não necessitava ‘prestar contas’ a ninguém. Pedro, piazito ainda, extasiava-se com as línguas vermelhas, lambendo negras pedras de carvão. De longe, contemplava o esmeril, ao desbastar férreas arestas. Estrelinhas de fogo feneciam no piso de argila. Com o tempo, tornaram-se familiares a forja, a bigorna, o fole, o martelo, a morsa, as tenazes, os cravos, também ‘levando em conta’ a pelagem e raça de cavalos.

O honrado ferreiro foi forçado a ampliar a humilde oficina. Sozinho, não estava ‘dando conta’ dos constantes pedidos. ‘Por conta’ da intensa procura, acresceu duas peças e ‘passou a contar’ com os braços de um auxiliar. A retidão, a cortesia, a cara alegre, e a competência sempre o colocaram em ‘alta conta’. Os mais chegados, tinham credito: ‘botavam na conta’. Em ocasiões especiais: Semana Farroupilha, aniversário da Cidade, rodeios, Festa da Padroeira, o martelo não descansava nem mesmo aos domingos. Permitia-se, de quando em quando, aos sábados, comparecer ao culto religioso.

Leôncio conheceu Florinda num fandanguito domingueiro no salão do tio Zico. Foi botar os olhos e ‘dar-se conta’ que o coração estava aos pinotes. A gringa trazia, suavemente, pedaços de mar na ternura dos olhos. O sorriso: um pealo de cucharra. Ano e meio “despôs”, Florinda trazia à mesa segreditos da culinária germânica. ‘Tomava conta’ das lides do rancho e ‘dava conta’ dos cuidados com a horta. Certa vez ficara ‘por conta’: esquecera de cerrar a cancela e a porcada se banqueteou.

Pedro Arcanjo, a princípio, condoia-se e intrigava-se ao perceber que os cavalos deveriam calçar sapatos de ferro. Acreditava que, por certo, sofriam com os cravos, pregados à carne. Leôncio, pacientemente, explicou-lhe que a ferradura destinava-se a proteger o casco, região muito sensível e importante para a locomoção. Aos ouvidos atentos, a experiência que ‘conta’. E prosseguia, transmitindo o que recebera do velho pai, da vivência e de algum entendido. Afirmava que os cavalos pisam sobre a extremidade de um dedo, protegido pelo casco, que nada mais é do que uma unha muito grossa.

‘Conta’ a história que, quando ainda não existia o hábito de colocar ferraduras, o casco sofria grande desgaste, o animal ficava inabilitado ao trabalho, esporte ou lazer.

A ferradura é fixada por uma série de cravos na parte morta do casco, portanto, o animal não sente dor, mas é preciso tomar cuidados na colocação. Além do ferro, o acessório pode ser forjado a partir do aço, alumínio e outros metais especiais. Ademais, permite proteção, a ferradura aumenta a tração das patas, serve para compensar defeitos de formação do casco e reduz irregularidades da marcha.

Pedro Arcanjo, num upa, ajoujou as primeiras letras. Grupo escolar 20 de setembro: menos de um quilômetro das casas. Agregou as palavras, contando com a competência da professora Sueli. A cartilha Caminho Suave, de Branca Alves de Lima, um caderno de caligrafia, e um estojo de madeira eram tesouros inseparáveis. Embora dado a peraltices, jamais ‘passara da conta’. O orgulho envaidecia Leôncio e Florinda. Aos poucos, definiam-se o mundo real e o ‘faz de conta’.

Bilboquê, bolas de gude, cinco-marias, piorra e bola de meia constituíam seu mundo lúdico.

Terça-feira, 24 de dezembro. As dependências da igreja tornaram-se diminutas para abrigar tantos fiéis. O ofício, como habitualmente ocorria, contava com a palavra de um consagrado pregador. A temperatura elevada causava desconforto. Mesmo assim, numa linguagem acessível, o ministro discorreu sobre a fraternidade e a liberdade. Pedro Arcanjo não perdia uma só palavra.

Manhã de Natal. Leôncio e Florinda deixaram-se ficar um pouco mais na cama. Procuraram pelo filho para entregar-lhe o presente. Foram encontrá-lo no pátio, dando liberdade aos pássaros que ao longo do ano apanhara com arapuca.

Leôncio, Florinda e Pedro Arcanjo entreolharam-se. Abraçaram-se. Beijaram-se. Sorriram. O silêncio dissera tudo. Entre lágrimas de alegria, conseguiram, apenas expressar FELIZ NATAL!

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - dezembro de 2013