PRISÃO PERPÉTUA NO BRASIL
PRISÃO PERPÉTUA NO BRASIL
Todos nós somos passíveis de deslizes. A máxima é irrefutável. Até mesmo os mais precavidos, cautos, e hábeis, vez por outra, tropeçam em básicos preceitos idiomáticos. Muitos os cometem, intensamente, sem que tenham percepção do agravo. Não possuem, por certo, senso crítico suficiente para detectar infrações escritas e faladas. Alguns os praticam porque outros já os cometeram. Poucos se dão ao luxo de verificar a racionalidade ideológica ou linguística.
Expressões, palavras ou sentenças, proferidas através da mídia, coesivas ou não, num átimo ganham direito de cidadania, disseminam-se, tornam-se modismos. Parte expressiva da população crê que o divulgado pelas redes de comunicação é irretocável. Repeti-lo é estar em dia com a modernidade. Exige espaço, indiferente à coerência. Felizmente algumas estruturas são efêmeras. Banalizam-se e sucumbem na vala comum: falta-lhes fundamentação. O momento requer, como todos os segmentos, inovações, acréscimos: nova roupagem, desde que suficientemente sedimentada.
Ao lado de neologismos, jargões, formas idiomáticas, regionalismos, deve-se ter o cuidado de regar as raízes filológicas e, por excelência, preservar nosso legado cultural. Nunca é excessiva a prudência: “olhos pregados”, nos levam a irremissíveis ”cochilos”.
Vejamos.
A progressão do regime de cumprimento de pena é um incentivo que a Lei de Execuções Penais concede aos presos que apresentam bom comportamento durante o cumprimento da pena. Consiste no direito de ser transferido para o regime mais benéfico – do fechado para o semi-aberto, ou do semi-aberto para aberto – após cumprimento da pena total, que poderá ser de 1/6 para os crimes comuns e 2/5 (se o apenado for primário ou 3/5 (se o apenado for reincidente), para os crimes hediondos ou equiparados, nos termos da Lei n.11464 de 11 de março de 2007.
Alheio a méritos ou censuras, relegados a outras instâncias, temos lido e ouvido, na voz e na pena de conceituados profissionais, muitos até ligados às Ciências Jurídicas, talvez sem que dimensionem a extensão do que declaram, o emprego de “progressão da pena” em lugar de “progressão do regime”.
Para que entendamos o equívoco, faz-se mister que tenhamos uma visão, ainda que parcial, do vocábulo “progressão” – sf (lat progressione) 1 Ato ou efeito de progredir; desenvolvimento progressivo; progredimento, progresso. 2 Continuação, sucessão. 3 Marcha ou movimento para a frente; avanço. (dicionário Michaelis).
Inicialmente, parece não haver qualquer prejuízo à compreensão, induzindo muitos a não percebem a diferença que a omissão de “regime de cumprimento” causa à estrutura frasal. Tanto o é que se a faz, e se persiste. O regime que deveria ter progressão, cede lugar à pena. São dispensáveis conhecimentos jurídicos para se detectar que a pena não pode ser envolta na/pela capa da progressão, ou seja, se alterada, pode ter, regressão ou remissão. Caso contrário, mantida a “progressão”, a cada dia cumprido, um dia acrescido. O apenado se tiver, como alguns apregoam, progressão de pena jamais voltará a ser bafejado pelos ventos da liberdade (privação perdurável). As preciosidades que nos chegam através dos paupérrimos exercícios redacionais, orgulhosamente defendidos pelos postulantes a uma cátedra universitária, não devem nos causar espécie: quem sabe somos moldura dessa paisagem?! As redações que nos chegam, através do ENEM, retratam a fragilidade de nosso sistema educacional.
E o acervo dessas relíquias é considerável. Recebe, inclusive, o apoio de educadores que temem, com a observação, traumatizar o educando. Alguns percebem, contudo fazem vistas grossas. Orientadores há, e os concursos públicos consagram a falta de proficiência, que não reúnem habilidades que possam sinalizar crassos desvios interpretativos e redacionais. Muitos docentes abdicaram da avaliação redacional: exige tempo, dá trabalho, ganha-se pouco, a nada leva. Passam a medir adequação vocabular, concordâncias, coerência e vertentes outras, através da frigidez gramatical nas provas de “cruzinha”, sem a indispensável contextualização. Se cobramos do aluno, em todos os níveis, a “decantada” redação, por que os professores não a fazem quando de seu ingresso à carreira profissional? Cremos que, com a falta desse instrumento, a literatura nacional priva-se de páginas memoráveis.
Outras faces da linguagem cotidiana desafiam a racionalidade.
Recorrendo mais uma vez ao dicionário Michaelis, encontraremos para ‘melhor’ – adj(lat meliore) 1 Comparativo irregular de bom, que é mais bom. 2 Superior a outro em bondade ou em qualidade. 3 fam Menos mal de saúde ou de situação. sm 1 Aquele ou aquilo que é preferível, que tem melhor qualidade que qualquer outra coisa. 2 Aquilo que é sensato ou acertado. adv 1 Mais bem. 2 De modo mais perfeito. 3 Com mais justiça ou verdade. 4 Com mais apreço. interj Designativa de indiferença ou de satisfação pela cessação de qualquer dúvida, importunação etc., ou por não ter efeito qualquer coisa; tanto melhor, preferivelmente. Levar a melhor: ter vantagem; sair vencedor. No melhor da festa: na melhor ocasião; quando menos se esperava. Quanto pior, melhor: forma de admitir que uma situação tensa se resolva.
Em situação oposta, as fontes registram: pior - adj m+f (lat peiore) Comparativo irregular de mau: Foi pior a emenda que o soneto. sm 1 Aquele ou aquilo que, sob determinado aspecto, é inferior a tudo mais: O pior ainda não foi revelado. Advérbio comparativo irregular de mal; mais mal; de modo mais imperfeito: Ontem melhorei, mas hoje estou muito pior. Antôn: melhor. Ir de mal a pior: piorar cada vez mais.
Referendado tão-somente na coerência, temos procurado entender as razões, se é que as há, que levam, particularmente a quem professa a linguagem trivial, ao estranho uso do ‘pior’. Aludimos a colocações tais como: Ganhei um skate novo, pior, como eu queria. (conforme, de acordo) | A galera do fundo não estudou, e o pior, todos foram aprovados. (mas, contudo)| Hoje sairemos às dez! - afirmou Marina - Pior! - expressou-se Paulinho – (que bom, ainda bem)|. Ganhe grátis, ou pior, ganhe inteiramente grátis.
Cremos ser de bom alvitre destacar que ‘melhor’ e ‘pior’ podem ou não ser flexionados. “Ventos ‘melhores’ já passaram por aqui, mas outros virão...” (Flores velhas) - ventos: substantivo – “ Elas dançam ‘melhor’ que os rapazes.” Observe que ‘melhor’ modifica o verbo (dançar), por consequência, advérbio. Um dos recursos recomendáveis é a equivalência de ‘mais bom’ (variável) e ‘mais bem’ (invariável), aplicável também a “mais mau” (variável), uma vez que ‘mau’ é adjetivo; “mais mal” (invariável), isto porque ‘mal’ é advérbio.
Como se sabe, o comparativo é um ‘grau’ do adjetivo ou do advérbio. Se tivermos: Esta redação é ‘melhor’ que a anterior, prejulga-se que ambas sejam de bom nível. Caso afirmemos que o desempenho de um jogador, foi ‘pior’ na terceira rodada, em tese, já era deficiente. Quando empregamos o superlativo relativo de superioridade: “Marcos é o ‘melhor’ pintor da equipe.”, logo, todos são bons; tivéssemos ‘pior’, todos deixariam a desejar, mesmo que efetivamente não seja a realidade.
Ainda que não tenhamos consenso, o uso de ‘mais mal’ e ‘mais bem’, diante de particípios, são recomendáveis. Na linguagem curial, dificilmente as encontraremos; em princípio, parecem ferir sensibilidades fonéticas: “Esta feijoada é a ‘mais bem’ condimentada do festival culinário.”|” Este atleta é o ‘mais bem’ preparado, fisicamente.” Aplica-se também ‘menos bem’ e ‘menos mal’.
Mesmo que nem sempre tenhamos a presença do advérbio de intensidade mais, ‘melhor’ e ‘pior’ situam-se como comparativos ou superlativos de superioridade. Repele-se, destarte, a redundância em ‘mais melhor’ ou ‘mais pior’. Como justificar ‘menos pior’? Usemos ‘menos mau’ ou ‘menos mal’: “É ‘menos mau’ inquietar-se na dúvida do que descansar no erro. ” (Alessandro Manzoni)| “As paixões fazem ‘menos mal’ que o tédio, pois elas tendem a diminuir e ele a aumentar.” (Jules Amédée Barbey d’Aurevilly).
Por que a forma ‘menos pior’ vem sendo usada frequentemente, inclusive por quem dispõe de alguns recursos linguísticos? Muitos de nós, possivelmente, já usamos a estrutura em alguma situação cotidiana, por força do impulso. Um amigo próximo comentava: “nossos atacantes estão numa fase tão ruim que o técnico tem dificuldade de escalar o ‘menor pior’.”| “Todos cantam mal: os avaliadores terão de escolher o ‘menos pior’.” Um atleta, um cantor, um objeto não podem ser ‘menos pior’ do que outro. Contudo, poderemos ter ‘menos ruim’. Dispomos de dois produtos alimentícios ruins e um é ‘menos ruim’; igualmente o será se tivermos dois livros bons, um pode ser ‘mais bom’ (melhor) do que o outro.
Nesse rol de colocações não podem ser olvidadas as comparações de dois adjetivos. Estivéssemos dispostos à compra de um veículo, como é natural, o vendedor propagaria: “O carro está em ótimo estado: é bom e barato.” Nosso limite econômico, quem sabe, por força de pechincha, proporia: “...é, mas nos parece ser ‘mais bom‘ que barato.”
Voltamos a enfatizar que algumas expressões, embora permitam pinçar o sentido, são incoerentes. Quando, por jocosidade ou despreparo, chega-se ao ‘mais melhor’, ou ‘mais pior’ avultam-se: o melhor possível, bom de verdade, excepcional, extraordinário, ou péssimo, detestável, inqualificável, e uma situação destaca-se como mais ou menos acentuada.
E enquanto a chuva vai levando nossos barcos de papel, tripulados por sonhos pueris, a inspiração encapela-se nos mastros do ‘bom’ e do ‘pior’. E crendo que, por vezes, o ‘pior’ seja o ‘melhor’ e o ‘melhor’ possa vir a ser o ‘pior’, resta-nos a escolha: “Dos males, o menor.”
Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - agosto 2013