“Quebrei a perna” ou “Quebrei minha perna”, qual frase está correta?
Na biblioteca da escola em que trabalho tive a oportunidade de folhear, pela primeira vez, a obra dos professores José de Nicola e Ernani Terra, intitulada “1001 dúvidas de português”, Ed. Saraiva 2001.
Fiquei simplesmente perplexo com o desserviço que algumas obras prestam ao ensino de língua materna, não acrescentando absolutamente nada.
Na página 203, há uma questão interessante e intrigante – e, ao mesmo tempo, CHATA -, que diz respeito ao emprego de pronomes possessivos diante de substantivos que nomeiam partes do corpo humano (no caso, mais precisamente, o corpo de quem fala). Lá, está escrito que “A linguagem culta não aceita construções em que o pronome possessivo antecede termos que indiquem partes do corpo, ou faculdades do espírito, quando estes estiverem funcionando como complemento na mesma pessoa que o sujeito da oração” (p. 203).
Após descreverem a regra, os autores dão alguns exemplos que “comprovam” a (in?) funcionalidade desta “regra”, mostrando as seguintes frases: “No jogo de futebol quebrei a perna”; “Engessei o braço”; “Pintei as unhas”. O grande problema, no entanto, é que os brasileiros quase nunca falam assim. Na grande maioria das vezes, dizemos: “No jogo de futebol quebrei minha perna”; “Engessei meu braço”; “Pintei minhas unhas”, etc.
Podemos dizer que quando os autores dizem que “a linguagem culta não aceita construções em que o pronome possessivo antecede termos que indiquem partes do corpo”, o fazem de modo, no mínimo, falso. E comprovam com provas cabais o título de sua obra, “1001 dúvidas de português”. Deveriam ter posto como título o seguinte: “1001 dúvidas do Português de Portugal”, afinal de contas, todos dizemos do outro modo, usando, na grande maioria das vezes, o pronome possessivo no lugar do artigo definido.
Ensinar língua culta (que é algo que existe e que regula as relações interpessoais formais de uma sociedade) é objetivo principal da escola, como o afirmam todos os linguistas aplicados. No entanto, não podemos negligenciar a fala (e até a escrita) de nosso povo em detrimento de regras que fazem parte de descrições da literatura clássica de Portugal. É um erro imaginar que ainda somos uma colônia e que devemos, como cordeirinhos, seguir esses mandamentos que não são formulados a partir de características de nossa fala e de nossa escrita. Não sou a favor de que as pessoas possam falar e escrever como querem (mesmo porque isso é impossível, à luz da visão científica!), mas não podemos, como disse, querer “pôr sapatinha de cristal em pé tamanho 45”; não cabe, gente!
Dessa forma, e para finalizar, eu faria uma reescrita da descrição da “regra” apresentada na obra dos professores Terra e Nicola (cujo objetivo – fique claro! – é ensinar a variedade culta da língua, mesmo que inadequadamente), assim: “A linguagem culta é determinada pelo uso e não pela literatura antiga. A literatura antiga foi, no passado, uma forma de uso, que não pode ser posta em comparação com os usos atuais que se fazem de nossa língua, em qualquer variedade. A gramática Normativa prescreve que não devemos empregar pronomes possessivos diante de palavras que nomeiam partes de nosso corpo, porém essa regra vale somente para os gêneros de texto de características muito formais. Por isso, saiba onde e como usar as formas do pronome possessivo adequando-as à situação comunicativa”. Acho que assim evitaríamos mais desentendimentos. É isso!
Walan Araujo