Freguês tem sempre razão

Manoel, do armazém da esquina, nunca foi de discutir com seus clientes. Muito antes de os deuses do Olimpo determinarem que freguês tem sempre razão, ele cumpria a regra que lhe criara a intuição ao crescer ajudando o pai. Cada um vive a vida de acordo com o que a vida vai lhe impondo e Manoel teve de crescer, para a glória do professor de biologia, antes, mas muito antes mesmo que tal conhecimento lhe fosse necessário, enchendo os miolos com as minudências da entomologia. Seu professor, nada entendendo de educação sexual, quando foi por ele perguntado como diferenciar uma formiga de uma vespa, já que era evidente ser diferente de uma joaninha, deu-lhe de presente uma tábua de classificação de insetos, agulhas e cortiça, além do necessário puçá para pegar borboletas. Brincou Manoel daquilo na infância e esqueceu-se do brinquedo na adolescência. Reapareceu-lhe a tábua de classificação como um gênio determinando seus atos ao se ver obrigado aos serviços de balcão no armazém. Observava os fregueses e entretinha-se em classificar as suas reclamações, que muitas eram do serviço de entregas. Muito louco isto de fazer entrega a domicilio, sem distinção, entregas a todos, até para fregueses que nem mesmo domicilio certo tinham. Era sua função de aprendiz, função em que domicilio tinha um significado ao preencher, sem dificuldade, a ficha de controle: - qual o seu domicilio? - "Rua que Sobe e Desce número que desaparece". Também lhe cabia verificar no mapa da cidade como localizar aquele endereço, dizer se a entrega poderia ser feita ou não de acordo com os critérios do pai, os quais mudavam de acordo com a cara do freguês, e, por fim, organizar a ordem das entregas para não ocasionar um ir e vir do caminhão. Passando o tempo, que em balcão de armazém também se madorna, ficava classificando as reclamações em tipos, vendo-lhes as asas, as patinhas, os palpos, reclamações cabeludas, imberbes, outras lentas e pausadas como lesmas, algumas picavam como marimbondo, umas poucas de mãos quase postas como os louva-a-deus. Louvas a deus? Louvas a deuses? Não se deve misturar as aulas de religião com as de português, deixa no singular mesmo, "como o louva-a-deus". Ora, ora, parênteses tenho que fazer pois devo poupar ao nosso aprendiz de português de tevê que madorna consta do dicionário, mas só tem etimologia, vem de madorra, que procurada, no Houaiss, não consta.

Ao falecer-lhe o pai, herdou o armazém da esquina, que, pouco a pouco, foi se firmando como armazém do seu Manoel. Casado, filhos já crescidos, cabelos agrisalhados, e um grande sorriso a todos aberto, mesmo sob as mais negras tempestades verbais de fregueses que... E que você não me interrompa mais querendo saber o que o ú tem a ver com o ó, pois se disse o professor de biologia nada entendia de educação sexual, foi porque a uma pergunta de criança sobre como nascem os bebês, não é preciso descrever a transa ção que dois adultos fazem para se dar o evento. Da mesma forma, Manoel não precisava ter se viciado em taxonomia, só por ter perguntado como diferenciar uma formiga de um zangão. Como estava eu dizendo, seu Manoel não se perturbava com os descontroles emocionais de seus fregueses, que podiam fazer chover canivetes sem lhe alterar os humores ou lhe ferver a bílis. Entrementes, ao a flauta de Hamelin gritar a todos os ouvidos que proibido estava entregar a domicilio, coçou os ralos cabelos, certo de que problemas bateriam à sua porta. Daí para frente sossego não mais teve. Todo freguês queria que lhe fosse feita entrega em domicílio. Esta parte da história já é conhecida e repetida não será. Acontece que a vida não é feita de um só dia, são muitos e todos desejam sempre que muitos, e muitos mesmo, sejam. Aquele explicar diário de estar proibido, pelo português da tevê, de entregar-a, impedido ficava de entregar-em, cansou-lhe a pachorria, e não me interrompa dizendo que esta palavra não consta do dicionário, que é um mal escrever, pois se dele não consta foi por não terem consultado o meu vocabulário, o único pai dos burros que me guia. Desde que não me estrambulhem o falar, que me importa se a pachorra transou com calma e nasceram-lhes a calmaria e a pachorria? Sim, meu pedra no sapato, você me diz que a palavra estrambulhar não existe, e, aí, não sei como a pôde ouvir... E lhe peço pela milésima última vez que não me estrambolhe tanto o falar, com o risco de meus pensamentos se desencontrarem do caminho à máquina que os transforma nas palavras que tanto lhe apoquentam os ouvidos e, consequentemente, seus alfarrábios mentais. Não me importa lhe existir ou não tal palavra, ela foi dita no devir do que conto, parida com naturalidade que nem vacilei no ditado, e saiba que os filhos naturais tanto direito têm quanto os legítimos. Mas, porém e todavia, se me cala a cada vez que uma palavra minha lhe coça os miolos, haverei eu de perder o fio da meada e você, desejando tanto os quê-significa isto ou aquilo, não o reconstruirá nos seus refolhos, deitando por inútil o fato de me estar escutando com atenção de picuinha. De formas que, se me permite continuar, entregar-se às discussões-a-e-em virou rotina na vida do vendeiro Manoel, que quase se viu a brigar com os fregueses, o que seu bom tino de comerciante desaconselhava. Tendo perdido um bom freguês, destes de compras altas, para o seu Joaquim do Armazém, que não se importava em entregar-em, e, no medo de outros perder, varou uma madrugada a bordar a seguinte carta-pública explicando suas atividades de entregas.

"Armazém São Joaquim, do Seu Manoel.

Em virtude da instituição de nossa nova língua, a que não deram nome e chamaremos de televisionês, para não fazer uso de nomes próprios, informamos a todos os nossos clientes e amigos que continuaremos a fazer entregas a domicilio para podermos entregar em seu domicilio com eficiência e a seguro. Deixamos claro que só entregamos a contrato. Pedimos que não botem minhocas na cabeça do rapaz que faz o controle das entregas, explicando-lhe que não é para entregar em seu domicilio, mas no domicilio de sua mãe, onde passa uns dias. Não se deixe perder pelas dificuldades criadas com o nosso novo idioma oficial, nós afirmamos com segurança: entregamos a domicilio, portanto, entregamos no endereço que nos fornecer, não importa se ali é ou não o local onde mora. Fazemos entregas a diário e a fio, chova ou faça sol, dia de semana ou feriado, mas observamos descanso aos domingos. Fazemos entregas a cada canto da cidade, mas se seu domicilio for muito longe, solicitamos a fineza de contratar entregador próprio, pois não entregamos a cavaleiro do morro do Sió, pois o caminhão ao subir dali não passa. Se você nos prestigiou vindo de longe comprar em nosso armazém, avisamos que não entregamos a às léguas. Avisamos também que não mais faremos entregas a nada, os custos aumentaram e necessário se faz cobrar pelo serviço. Não daremos descontos em entregas a breve distância, pois todas as entregas têm o mesmo custo; se for o caso, contrate nosso rapaz para fazer a entrega a dorso. Não faremos entregas a fiado, em exceção, para os fregueses de caderno que estiverem em dia. Solicitamos que se lembrem sempre: fazemos entregas a domicilio, e, portanto, não podemos entregar a horas, de modo que, se houver urgência em receber sua mercadoria, pedimos contratar um carreto particular para entregar a hora certa. Não mais faremos entrega a mata cavalo! Poderemos abrir exceção quando houver premência e entregar a bom ligeiro, desde que avisados com antecedência, só que cobraremos por serviço de carreto e não por serviço de entrega a domicilio. Com relação ao horário de entrega, não fazemos entregas a desoras, muito menos a horas altas. Em virtude de contarmos com um só caminhão, solicitamos o obséquio de fazerem a compra toda de uma só vez, pois não podemos mais fazer entrega a bocados. Informamos que o motorista que estava fazendo entregas a meia adriça foi demitido e encaminhado para tratamento de seu vício. O novo motorista está desde já proibido de beber em serviço, contudo, pede-se não discutir com ele, pois é seu costume dele nada entregar a contragosto. Avisamos a todos, que não se preocupem com as notícias alarmantes da televisão de que é proibido entregar a domicilio. Nós sempre vendemos em nosso domicilio, na esquina da Rua Purista Infantil da Silva com avenida Besteirol, e para seu conforto passamos, também, a vender a domicilio, e, se vendemos a domicilio, devemos entregar a domicilio, o que sempre faremos dentro dos limites expostos de nossas possibilidades. P.S.: meu filho, o Manoelzinho, está dando aula de reforço em domicilio, mas pedimos que não marquem horário perto da hora de jantar, pois a mesa estará, pela família, ocupada. Se for o caso, peça ao Manoelzinho para dar aula a domicilio, o que ele de gosto atenderá, desde que haja outro domicilio a visitar no caminho, uma vez que não lhe dará proveito dar aula em apenas seu domicilio. Pedimos desculpas pelos transtornos criados pelo português da televisão, mas não há a quem reclamar e estamos procurando atendê-los nas entregas da melhor forma que nos é possível. Grato. Manoel."

(escrito em 02/2008)

Gilberto Profeta
Enviado por Gilberto Profeta em 22/06/2013
Código do texto: T4353173
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