O Todo-poderoso saber gramatiqueiro
      
Extraído da Coletânea TEXTOPr@tico

Número 4
O prestígio dos gramáticos, dos consultórios gramaticais, dos professores de língua, perdura há quase dois séculos entre nós.
 
(Antônio Houaiss. O Português no Brasil)
 
Aspirar à clareza, à simplicidade e à precisão sem um bom vocabulário e uma gramática exata seria querer o fim sem os meios.
 
(Rui Barbosa. Suplemento  Literário. “A Manhã” 05.07.1942 apud Assis Sobrinho)
 
A influência popular tem um limite; e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr.
 
(Machado de Assis. A Língua)
 
Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto eu vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam os meus livros, escritos em idioma próprio, eu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.
(Guimarães Rosa)
 
Passadas em revista as mais famosas gramáticas do Brasil, chegamos à conclusão de que o peso terrivelmente asfixiante da rotina continua a abafar o ensino do idioma. Como essas trepadeiras envolventes e daninhas, continuam as antigas regras, puramente artificiais, ou já sem aplicação em nossos dias, a enredar-se em torno do velho roble português, impedindo-o de frondejar à larga, à desenvolta. O que era artificial no século XVI e XVII, agravado pela inconsciência da repetição e da memorização, continua a dominar ainda agora, muito embora o vejamos em absoluto desacordo com os fatos modernos do idioma que falamos. Chegamos ao ponto de ensinar aos alunos uma língua que eles nunca falarão e jamais ouvirão falar, como se fosse um idioma desaparecido com Camões, Bernardes ou Frei Luís de Souza, morto completamente para nós. Temos esquecido que o aprendizado do português tem por finalidade colocar nos lábios dos estudantes expressões e conhecimentos que lhes sirvam de apto e perfeito instrumento de intercâmbio social de ideias e sensações.
 
(Silveira Bueno. Gramática Normativa da Língua Portuguesa)
 
Nada há mais velho que a moda, nada mais fácil que a originalidade das desobediências (...) Mas vencida essa crise de crescimento, se não se quer ser infante toda a vida, não há outro endereço mais que o do amor e respeito aos modelos eternos da linguagem.
(João Ribeiro. Páginas de Estética)
 
Mesmo correndo o risco de propugnar uma certa anarquia linguística, acho que faz mais sentido tomar a sintaxe como um fenômeno dinâmico que ocorre em contextos reais, e não como um jogo de estruturas pré-fabricadas em que vamos encaixando as palavras segundo fórmulas banais.
(Hélio Schwartsman – Jornal Folha de S. Paulo)

 

Outro dia enredei-me numa longa discussão sobre o uso do subjuntivo. Tratava-se de descobrir se a construção “eu suspeito que ele é...” é lícita ou se é necessário escrever sempre “eu suspeito que ele seja...”.
 
Com essas palavras, um editorialista da Folha de S. Paulo iniciou artigo na edição de 13 de março de 2001 no qual justificava o emprego, numa mesma frase, do termo suspeita e do modo indicativo (é), em vez do subjuntivo (seja), como prescreve a gramática tradicional.
 
Trazemos a exame a questão, pois, além de atual, ela toca também os problemas que vimos discutindo nesta página eletrônica: o policiamento gramatical, o normativismo linguístico, o império de regras arbitrárias e inflexíveis de uso da língua, fruto do
 
prestígio dos gramáticos, dos consultórios gramaticais, dos professores de língua, (que) perdura há quase dois séculos entre nós,
 
como registra o mestre Antônio Houaiss.
 
Nada temos contra os gramáticos nem contra as regras e os usos cultos de linguagem, como vimos deixando claro ao longo dos textos que publicamos aqui neste espaço virtual. Mas o absolutismo, a tirania, o prestígio exagerado (e forçado) da gramática e do gramático prescritivista, tudo isso pode e deve ser questionado e examinado com sensatez e equilíbrio, sem reacionarismo tolo nem subversão linguística.
 
Desse modo, sob todos os aspectos, é saudável a discussão e o enfrentamento das normas imperiosas de uso da língua, como fazem
 
gramáticos como, por exemplo, Celso Cunha, Rocha Lima e Evanildo Bechara − donos de profundos conhecimentos filológicos e vasta cultura clássica, capazes de fecundas comparações entre diversas línguas antigas e modernas e sensíveis às evoluções teóricas do saber linguístico. (Marcos Bagno)
 
Contra o saber gramatical onipotente, de modernos e antigos, valha-nos Gladstone Chaves de Melo (Filologia da Língua Portuguesa) dissertando sobre A “Gramatiquice”, seus Métodos, suas Bases:
 
Ora, o que essa aberração que chamamos de “gramatiquice” faz é deduzir normas tiradas da Lógica ou, o que é pior, do gosto ou das implicâncias pessoais dos gramatiqueiros, dos puristas, dos buriladores de frases. Um tem antipatia pela forma “apiedo-me”, a outro não lhe sabe bem a concordância “um dos que mais trabalhou”, a tal outro lhe repugna a regência “amor por”. E dá-lhe a condenar isto e aquilo, como galicismo, como barbarismo e sei lá que mais.
 
O resultado de tudo é que o fundamento da gramatiquice fica sendo o capricho pessoal, a opinião, qualquer coisa de essencialmente múltiplo e variável. E então vêm as querelas, vem o  “Fulano acha”, “Beltrano prefere”, “Sicrano condena”. Vem o argumento de autoridade, vêm as inúteis citações de vernaculistas de cara feia, vêm os severos preceitos vazados na pior das linguagens, a linguagem toda impregnada do intolerável “ranço gramatical”.
 
É natural, pois, que os homens sensatos se distanciem de tal literatura, concluindo sadiamente que isso é ocupação de ociosos. (Grifamos.)
 
Com toda razão, o editorialista assim concluiu o citado artigo na Folha:
 
Afirmar que existe certo e errado absoluto em língua é dizer que só há uma forma “correta” de pensar, o que, para mim, justifica o tiranicídio.
 
Afirmação a qual subscrevemos inteiramente, e que adotamos como norma da Coletânea TEXTO PRÁTICO, não obstante defendermos, no caso, a construção subjuntiva...