Quem escreve certo também pode escrever errado (ou: O autor de Escrever Certo tem o direito de “escrever errado”)


Extraído da Coletânea TEXTOPr@tico

Número 2

(Crítico) implacável da pureza do nosso idioma, [que] não cessa de desentoar e pregar faltas alheias, as incorrecções e galicismos que se nos escapam ao escrever (...)
 (Mário Barreto, comentando crítica feita a texto de João Ribeiro.
Através do Dicionário e da Gramática)

 
(...) em matéria de língua portuguesa, cumpre sermos moderados e modestos em nossos juízos, muito cautelosos e prudentes em afirmar o nosso saber e ainda mais em marcar os erros dos outros.
          (José Veríssimo. Estudos de Literatura Brasileira)
 
Se a experiência e o estudo de um velho merecem fé, aceite um conselho:  — pode ser o mais veemente possível na defesa de nossas ideias; convém, entretanto, não ser agressivo. Que a sua pena, por mais ardente que seja, nunca se manche na ofensa, na intolerância, na descaridade espiritual.
(Carlos Imbassahy, cultor da língua, escritor e polemista,
                                           aos 70 anos de idade, em carta a um confrade)

 
Por outro lado, graças a Deus, faltam-lhe [a Adriano da Gama Kury] completamente o ardor bélico e o furor missionário, que caracterizam tantos gramáticos. Quando diverge de um colega sabe discordar dele sem condená-lo.
(Paulo Rónai. Posfácio ao livro Para Falar e Escrever
Melhor o Português, de A. da G. Kury)

O professor, dicionarista e folclorista Aires da Mata Machado Filho durante muitos anos assinou no jornal O Estado de Minas a coluna ESCREVER CERTO, na qual praticou o que chamava de jornalismo gramatical.

Esses textos foram enfeixados numa coleção de livros, com o mesmo título. E de um deles colhemos uma crítica feita pelo professor Horácio Mendes, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, à construção passiva do verbo aludir no seguinte período de Mata Machado: O aludido cronista é um deles... Mendes remata o artigo dizendo que

o vulgo pode escrever de tal maneira... Mas o autor de Escrever Certo já não tem o direito de escrever coisas erradas.

Mata Machado, com a elegância e o humor que foram sua marca, defende convincentemente a construção de que fez uso. Mas o que nos interessa aqui não são as lições de gramática, e sim a lição de humildade intelectual dada por Machado no caso, por ser sobre todas, a mais importante. Assim respondeu o mestre mineiro:


O amável professor do Rio acha que o autor de “Escrever Certo” já não tem “direito” de escrever errado.

Não me parece justo rastrear, no título do meu pobre livro, ridículas pretensões à infalibilidade.

Erro, e muito, apesar de todo o meu esforço para não “tombar” em deslizes.

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             Sou apaixonado estudioso da língua, e nada mais.

Só que os problemas que procuro resolver são sugeridos pelos meus leitores. Sinto muito, mas só lhes posso dar como documentação aquilo que encontro nos dicionários e nos bons autores.

Como escrevo mais para aprender do que para ensinar, vou divulgando como posso minhas conclusões de estudante. Com isso, capacidade me faltaria, ainda que tivesse o gosto, para procurar deslizes de linguagem em escritos alheios, que os meus já me dão grande trabalho.


A linguagem é assunto que não pode ter a fixidez como norma e no qual não cabe intransigência. Questões traiçoeiras, regras intrincadas, pontos controvertidos, ao escrever tudo isso nos assalta a cada instante, e enganos e desatenções ocorrem com frequência.

Na esteira do provérbio latino, mas universal — errare humanum est,  Rui Barbosa dizia:  Não há escritor sem erros, e, como se viu acima, com inteira razão, pois, em matéria tão versátil como a língua portuguesa, ninguém deve ser crítico impiedoso, nem ter pretensões à infalibilidade...