Os mitos e os ritos por trás das letras
Resumo
Pretende-se aqui dar uma perspectiva de objeto de estudo aos erros de
gramática e de redações compostas por vestibulandos. Assim, analisamos o ensino nessa área sob a ótica de quatro autores: Marcos Bagno, para o qual há mitos sobre os conceitos da gramática; Luis Carlos Cagliari, que exemplifica reações de alunos de classes sociais distintas, cuja vivência com a leitura e escrita são diferentes; Mário Osório Marques, que afirma haver ritos tradicionais como dogmas, e não como instruções, no ensino da redação; e Lúcia Santaella, questionadora dos limites de classificação dos tipos textuais em relação às inúmeras possibilidades de atualização da linguagem verbal.
Palavras-chave: aprendizagem, ensino, redação.
Introdução
Este trabalho iniciou a partir de duas observações sem nenhuma
pretensão acadêmica. A primeira se refere a sites com notícias sobre educação e a segunda, a comentários feitos no talk show “Programa do Jô”, exibido pela Rede Globo de Televisão. Em certos momentos, geralmente época de concursos de vestibular, tais sites e o apresentador global Jô Soares expõem frases de redações consideradas maus exemplos de textos. Em ambos os casos, o objetivo parece ser o de apenas divertir o leitor ou telespectador. Tais publicações online, igualmente ao talk show, atribuem mais conotação hilária ao assunto, do que o valorizam como uma manifestação da realidade em que se encontram os alunos do ensino médio quanto ao domínio não só da redação dos próprios textos, como em relação aos temas sobre os quais deveriam escrever.
A metamorfose da despretensão para o científico iniciou quando se
percebeu que a maioria dos comentários não apresentava uma proposta de estudo sobre as causas das dificuldades nas composições dos textos. Consideramos aqui que esses estudantes não devem ser apenas qualificados como sujeitos ignorantes da forma culta da escrita. Um dos riscos dessa conotação é sugerir que as frases não teriam outra finalidade senão a de denunciantes da ignorância de seus autores.
Os exemplos compilados das redações de vestibular, mais do que uma exposição do pândego, se constituem em expressão de uma parcela estudantil que, de alguma forma e em algum momento, foi submetida a uma situação crítica na própria aprendizagem ao longo de toda uma vida escolar. Assim, pretende-se neste artigo discutir sobre a questão.
Os mitos e os ritos por trás das letras
"Por que os alunos vão tão mal na redação? Eis um belo mote para dissertação, com ingredientes de sobra para um debate acalorado. Por muito tempo, porém, em vez de procurar argumentos, defender pontos de vista e buscar soluções, muita gente preferiu fugir do tema."
(Hélio Consolaro)
Instigados pela interrogativa da epígrafe, observamos neste momento o
tratamento dado ao ensino da gramática e da redação. Esses fatores foram definidos a partir de um comentário do consultor do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) Reginaldo Pinto de Carvalho, na entrevista intitulada “Tem uma redação no meio do caminho”, publicada no portal “Por Trás das Letras”, concedida a Hélio Consolaro, e da qual foi destacada a citação.
Sobre a questão “por que os alunos vão tão mal na redação?”, o próprio
texto inicial da entrevista sugere que pelo menos algumas perguntas girariam em torno do despreparo dos alunos e da falta de interesse em se discutir esse problema. Porém, o texto publicado no portal não mostra nem afirma que a pergunta foi feita ao consultor do Enem e, portanto, não há uma resposta sobre o tema.
Entretanto, um comentário do consultor sugere suficientes
desdobramentos a respeito do tema desta pesquisa. Na opinião dele, a exigência da redação nas provas do Enem e nos vestibulares, “poderá fazer com que a sociedade exerça pressão sobre a escola para que ela cumpra sua obrigação de dotar os alunos das competências para produzir um texto coerente" (4º parágrafo do texto de abertura da entrevista).
Dessa opinião pode se abstrair que as dificuldades de aprendizagem da
escrita não tem sido exclusivamente um problema dos alunos. Talvez o fato de a escola não estar cumprindo corretamente sua função de ensino da Língua Portuguesa esteja contribuindo com essa situação. Isso não significa absolutamente que bastaria um maior empenho por parte das instituições escolares na aplicação de exercícios de redação para resolver o problema. Existem outras questões a serem evidenciadas, como o próprio ensino e a capacitação e atualização dos professores.
Essas duas questões levam à reflexão sobre como a gramática tem sido
ensinada ao longo dos anos e o que precisaria ser repensado nesse ensino. Os processos históricos de sistematização da língua falada reduziram-na aos signos da escrita, através dos vários alfabetos dos vários idiomas, visando uma construção correta e simples, de fácil compreensão do elemento escrito, que guardasse as informações com fidedignidade. Na língua portuguesa tal processo redundou, no entanto, em um sem-número de regras gramaticais. Criadas para facilitar os processos de registro da língua falada, tornaram-se complexas, dificilmente aprendidas pelo aluno e até mesmo por muitos professores.
Poucos autores tratam do assunto com um senso crítico aguçado que
aponte caminhos na busca de soluções. A maioria sempre mostra sugestões de como fazer uma redação seguindo as mesmas regras da gramática ou usando recursos auxiliares que apenas reforçam técnicas repetitivas, como “se ater a um tema delimitado”, “ter um bom dicionário”, “uma boa gramática”, “não usar gírias”, “não usar vícios de linguagem” etc. A reportagem “Redação: o eterno bicho-papão do vestibular”, de Werciley Silva, confronta a repetição das sugestões para uma boa redação e a continuidade de textos mal estruturados:
"São Paulo - A fórmula parece bem simples: leia com atenção o tema
proposto, apresente argumentos convincentes, não use vocabulário
rebuscado, evite clichês e preocupe-se com ortografia e pontuação.
Seguindo essas dicas, é possível fazer uma redação nota 10 nos principais vestibulares do País, garantem os professores. Mas se a receita é mesmo tão fácil, por que eles passam anos tentando fazer seus alunos escreverem melhor e, ainda assim, a redação continua a ser o bicho-papão do vestibular?" (SILVA, 2005).
Na reportagem da qual foi extraída a citação não se anuncia que em
algum momento houve bons resultados por se seguir os conselhos para se fazer uma prova aceitável dentro dos parâmetros da norma culta. Porém, vários professores se manifestam quanto a situação do vestibulando sob a pressão do exíguo tempo-limite para discorrer sobre um tema sugerido na hora da prova do vestibular.
De fato, não se pode extrair um texto primoroso em somente quatro horas de prova de redação, se o preparo do vestibulando foi crítico durante toda a vida escolar. Segundo Reginaldo Pinto de Carvalho, “com um mínimo de onze anos de escolaridade, ao término do ensino básico, espera-se que o participante esteja capacitado para ler e escrever, dominando a norma culta da língua escrita” (CONSOLARO, s.d.). Ou seja, teoricamente, os alunos concludentes do ensino médio já teriam estudado mais de uma década, o suficiente para dominar a escrita. Porém, se constata diante de uma prova de redação que esses onze anos não foram nada produtivos.
Mitos da gramática
Na busca de uma norma culta revisada, Marcos Bagno defende a urgente discussão de uma mudança. Tal discussão diz respeito aos mitos que envolvem a linguística e que se tornaram fator de discriminação entre os que “conhecem a norma culta” e os que “não conhecem”. Essa visão do autor sobre o domínio da gramática tradicional tem gerado polêmica. Para Bagno, as dificuldades não estão apenas no ensino ou na aprendizagem. Antes de tudo, os conceitos vigentes da gramática carecem de uma revisão urgente. O linguista afirma no discurso “Preconceito contra a lingüística e os lingüistas”
"A gramática tradicional, funcionando como uma ideologia lingüística, foi e ainda é, como toda ideologia, o lugar das certezas, uma doutrina sólida e compacta, com resposta única e correta para todas as dúvidas. Por isso, o que não está na gramática é "erro" ou simplesmente "não é português"! A Lingüística moderna, ao encarar a língua como um objeto passível de ser analisado e interpretado segundo métodos e critérios semelhantes aos das ciências naturais, devolveu à língua seu lugar de fato social, abalando as noções antigas que viam a língua como um valor ideológico. Assim, a Lingüística, como toda ciência, é o lugar das surpresas, das descobertas, do novo.
Ora, o novo assusta, o novo subverte as certezas, compromete as
estruturas de poder e dominação há muito vigentes. Não é por acaso que, mesmo entre profissionais que deveriam ter a Lingüística como seu corpo teórico e prático de referência, a doutrina gramatical tradicional ainda encontre muito apoio e defesa" (BAGNO, 2001).
O autor não se considera um defensor do “vale-tudo” (expressão do
próprio) na língua portuguesa falada no Brasil. Para o linguista, “não se trata de negar a existência das formas padronizadas tradicionais, mas de descrevê-las com honestidade, mostrando sua obsolescência e o lugar restrito que cabe a elas na língua, enquanto não desaparecem de vez...” (BAGNO, 2003, p. 176). Bagno é incisivo ao afirmar que “o ensino da gramática [...] não acompanha os progressos da ciência da linguagem” (2003, p. 66). Para exemplificar essa afirmação, ele comenta:
"Qualquer pessoa bem informada acharia no mínimo estranho [...] se um
professor de Ciências dissesse que a Terra é plana e o Sol gira em torno
dela, ou ainda se um professor de Química afirmasse que a mistura dos
"quatro elementos" (ar, água, terra e fogo) pode resultar em ouro! São idéias mais do que ultrapassadas e que começaram a ser substituídas por novas concepções mais verossímeis a partir do período da história do conhecimento ocidental conhecido como o nascimento da ciência moderna (século XVI em diante). Ninguém se espanta, porém, quando um professor de língua ensina que os substantivos são "palavras que representam os seres em geral", ou que sujeito é "o ser do qual se diz alguma coisa", ou que pronome é "a palavra que substitui o nome". São afirmações tão imprecisas e incoerentes (para não dizer francamente falsas) quanto a de que as avestruzes enterram a cabeça na areia ou que apontar para as estrelas faz nascer verruga nos dedos! E no entanto elas continuam sendo estampadas nos manuais de gramática, nos livros didáticos, nas apostilas, e cobradas em testes, exames e provas de vestibular!" (BAGNO, 2001).
De acordo com a citação, as mudanças no ensino requerem antes a
necessidade urgente de revisões históricas nos conceitos dos elementos da gramática. Essas revisões implicam averiguar o que é normativo no português e o que caiu em desuso, pois, segundo o autor, muitas normas consideradas “cultas” no Brasil ainda se atêm a uma ortodoxia da língua que não admite olhares científicos para verificação de possíveis ajustes ao contexto atual.
O linguista fala, por exemplo sobre a crase histórica, um fenômeno que
aconteceu no passado, mas que continua acontecendo hoje, como no caso de alcoólico e caatinga, pronunciados “alcólico” e “catinga” (2003, p. 68). No entanto, o ensino da crase limita-se ao caso da contração da preposição ‘a’ com o artigo ‘a’, como se este fosse o único exemplo existente. Uma iniciativa de se ensinar esse conceito poderia causar uma revolução no ensino da crase, e do acento grave.
Bagno também afirma existirem mitos sobre a língua portuguesa falada
no Brasil que precisam ser investigados mais seriamente, antes de se considerar o certo e o errado no ensino da língua. Lançando mão de assertivas críticas sobre os gramáticos tradicionais, considera-os um grupo elitista a impor suas regras da língua como definitivas, não deixando abertura às reflexões sobre os fatores que influenciam os casos de mudança na língua e a aprendizagem deficiente desta.
Essa postura dos gramáticos, para Bagno, causa um preconceito contra o cidadãoque por condições diversas não apreendeu essas regras. Em “Preconceito lingüístico: o que é, como se faz” (2004), o autor enumera oito mitos geradores de preconceitos linguísticos a respeito dos quais:
"[...] é preciso que cada professor de língua assuma uma posição de
cientista e investigador, de produtor de seu próprio conhecimento lingüístico teórico e prático, e abandone a velha atitude repetidora e reprodutora de uma doutrina gramatical e incoerente" (BAGNO, 2004).
Dos mitos de Bagno, cita-se aqui o sétimo, “É preciso saber gramática
para falar e escrever bem”, sobre o qual o autor afirma:
"É difícil encontrar alguém que não concorde com a declaração acima. Ela vive na ponta da língua da grande maioria dos professores de português e está formulada em muitos compêndios gramaticais [...]
Por que aquela declaração é um mito? Porque, como nos diz Mário Perini
em Sofrendo a gramática (p. 50), “não existe um grão de evidência em favor disso; toda evidência disponível é em contrário”. Afinal, se fosse assim, todos os gramáticos seriam grandes escritores (o que está longe de ser verdade), e os bons escritores seriam especialistas em gramática" (BAGNO, 2004, p.62).
O enunciado da última frase da citação pode ser elucidado em forma de
pergunta: quantos gramáticos já escreveram um romance e quantos grandes escritores já publicaram um livro sobre a gramática? O livro “A língua de Eulália” (BAGNO, 2005) também exemplifica de modo extenso o mito número 4 do preconceito linguístico: “as pessoas sem instrução falam tudo errado” (BAGNO, 2004, p. 40). Para explicar esta afirmação como um mito, Bagno recorre ao que chama de fenômeno fonético ocorrido ao longo da evolução da língua portuguesa padrão, como aconteceu com as palavras “brando”, “cravo” e “obrigar”, dos originais em latim “blandu”, “clavu” e “obligare”. Bagno lista outras nove palavras que sofreram o fenômeno fonético na letra “l”e afirma:
"Como é fácil notar, todas as palavras do português-padrão listadas acima tinham, na sua origem, um L bem nítido que se transformou em R. E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema [...]. E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal, já que escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento literário do português clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no mínimo absurdo" (BAGNO, 2004, p. 41).
(continua)