BRINCANDO COM A "EDUCAÇÃO"

BRINCANDO COM A “EDUCAÇÃO”

Quando espraiamos o olhar, talvez com restrições na acuidade, às colunas basilares de nossos núcleos comunitários – pilares fundamentais ao desenvolvimento, à sobrevivência e à honradez –, a perplexidade e a indignação avultam-se. Inermes e inertes somos levados a contemplar, estarrecidos, no painel de nossos sustentáculos estruturais, nuvens plúmbeas que prenunciam nefastas precipitações, colocando em risco nossos tênues e combalidos fios de esperança que procuram, ao menos, fontes paliativas e postulados alvissareiros, se é que os há! A eliminação de ventos funestos, bem o sabemos, é utópica.

Vislumbram-se as vexatórias e constrangedoras situações de carência do indispensável saneamento básico, da imprescindível segurança a todo cidadão, e da imaculada moralidade no gasto de recursos públicos. Arrolem-se a aviltante impunidade, o beneplácito jurídico, a moribunda situação da saúde, as vulneráveis áreas de habitações populares e a controvertida e polêmica “educação”. Em contrapartida, por que lamentar? Temos um suntuoso e babilônico carnaval, sediaremos, sem obras superfaturadas, a copa do mundo de 2014, as bolsas governamentais dispensam-nos de atividades laborais, e por nossas praias afrodisíacas desfilam as mulheres mais lindas do mundo.

Ao citarmos “educação”, façamos referências, inferências e deferências à “cultura” e, por extensão, a alguns de seus instrumentos mensuráveis, notadamente à redação.

Nas séries iniciais, primeiro dia de aula, em tempos que se perderam no próprio tempo, a meiga e maternal professora, após entusiástica motivação, solicitava que “escrevêssemos” a respeito de como foram nossas férias. Expúnhamos um pouco de verdade, pitadas de fantasia. Dedos trêmulos e inseguros conduziam o lápis, bem apontado, pelas veredas do imaginário. Pensamento distante, olhar ao teto, borracha gasta. A incipiente proposta merecia honrosos comentários e retornava, tal qual as demais provas, cientificada pelos pais. Os educadores acompanhavam a evolução, a persistência ou eliminação de erros, a criatividade e os passos primeiros da arte da comunicação. Estimulava-se o escrever, destacando-se relatos inovadores, valorizando acontecimentos hodiernos. Livros e cadernos encapados, letra cursiva e, principalmente, legível: reminiscências, recordações. Usava-se caderno de caligrafia. Um pouco diferente de hoje, nessa época, a insuficiência anual levava à reprovação escolar.

A seguir, a inspiração fundamentava-se no bucolismo: paisagem com o sol ascendendo entre elevações montanhosas; pássaros voejando; a timidez de um córrego cristalino, a pequena ponte de madeira; duas ou três árvores copadas e a simplicidade de uma casa branca com uma porta e duas janelas. Ah! não vamos esquecer da fumaça que fugia pela chaminé. Exercíamos a habilidade descritiva e deveríamos enriquecer, com adjetivos e advérbios, os substantivos. Cultivavam-se capacidades perceptivas, imaginativas e criativas. A leitura de dois livros por semestre ampliava nossos horizontes.

Diga-se ainda que os discentes eram comunicados dos temas e de quando fariam a prova de redação. Preparavam-se ao longo de uma semana ou mais, pois alguns tópicos exigiam pesquisa e seriam desenvolvidos nas inesquecíveis folhas de papel almaço, pautado. Visitas a museus, parques, exposições, feiras de ciências, mereciam relatos e resenhas. Escrevia-se por querer, por prazer, por dever, para saber.

Algumas experiências não chegaram à eficácia: o tema livre (dificuldade em manter isonomia linguística); a escolha de uma proposta entre três alternativas; os parágrafos com lacunas. Os concursos vestibulares também abandonaram essas práticas controversas. As Universidades que realizam seus concursos de ingresso, na mor parte, referendam-se em textos, solicitando que se discorra sobre a ideia central. Algumas instituições não confiam na lisura e competência do ENEM. Cremos inquestionável. Aplicam instrumentos próprios, e mesmo trilhando caminhos que exijam muita dedicação e competência processam provas com questões analítico-expositivas, examinando o conteúdo ainda sob a óptica da Língua Portuguesa. Quem quer qualidade não pode medir esforços. Professor, independente da disciplina, deve ter e exigir conhecimentos básicos da Língua Portuguesa. Não ficam isentos médicos, engenheiros...em especial advogados.

Deixaram de ser cobrados, em concursos públicos, textos poéticos, em se considerando a falta de conhecimento e sensibilidade nos critérios de avaliação, por excelência, subjetivos. As ilações dedutíveis de um elaborador de provas levaram um sonetista a mostrar-se estupefeito: “Não sabia que havia tudo isso em meus pobres versos” – afirmou o poeta.

Alguns docentes, ainda hoje, exercitam técnicas redacionais, valendo-se de provérbios, máximas e axiomas, pretendendo, através da interpretação, a objetividade, a coerência, o poder de síntese, a concisão, e domínio de núcleos linguísticos. É incontestável que a gramática só passa a ter sentido quando aplicada em segmentos textuais. São redigidos, de quinze em quinze dias, pequenos textos, com dez linhas no máximo. O tempo de uma aula permite não só a realização, como a revisão mais acurada. Os alunos não chegam à exaustão e se mostram satisfeitos. Evita-se o “deu branco”, “não estou inspirado (a)”.

Paralelamente a criativos e responsáveis profissionais da educação, muitos, por absoluta falta de capacidade, como não “decoraram” ou “prepararam” a matéria a ser ministrada, lastimavelmente, lançam mão da proposta redacional, sem qualquer orientação. Outros, por falta de domínio de classe, fazem-no como ato punitivo. Faz-se mister destacar que, embora tome longo tempo, não podemos ficar restritos apenas a uma vista d’olhos ao texto, compartilhado com olhares à novela das oito . Dois ou três exames são necessários e com o registro das incorreções e dos méritos, do contrário, é piada, é chiste, é deformação cultural.

Outras técnicas, à colheita de bons frutos, podem ser disponibilizadas: fornecimento de três ou quatro palavras, não necessariamente de mesma classe gramatical, sem vínculos comuns. Solicita-se a elaboração de três parágrafos, chegando a quinze linhas, em que estejam os vocábulos adequadamente empregados. Os componentes estruturais: introdução, desenvolvimento e conclusão podem ter a ordem alterada. A complexidade de estabelecer linha de coerência, fundamentação lógica e objetividade é o grande desafio.

Quando dispomos de períodos geminados, é aconselhável trabalhar com pequenos textos, solicitando reformulação no desfecho original. Sem dúvida, exige criatividade e coerência.

Adite-se aos resultados positivos o fornecimento, a cada encontro, de cinco palavras que não sejam de uso curial, instando-as nas provas, quer na sinonímia, quer na elaboração de sentenças. Lembremos que parte dos conteúdos gramaticais perde-se nas curvas da praticidade operacional, ainda que subsídios fundamentais sejam indispensáveis a todo profissional, excluindo-se como privilégio e obrigação tão-somente do e ao orientador(a) de Língua Portuguesa. A boa comunicação prescinde de fundamentos gramaticais.

De que vale o esforço de tantos educadores ante o que se segue. “Nós pega o peixe” ou “os menino pega o peixe”. Os aberrativos erros gramaticais são encontrados no livro de Língua Portuguesa – Por uma Vida Melhor – adotado pelo Ministério da Educação. Embora erros, creem os autores, que o uso da língua popular é válido. O livro apresenta frases incorretas e explicações para cada uma delas, como forma de ensinar a maneira correta de falar e escrever, contrariando básicos fundamentos da psicofilosofia educacional.

A recreação não é exclusividade dos livros didáticos, nem prerrogativa de doutos educadores. Falhas no ENEM ocorrem desde 2009, quando a prova foi roubada. Houve vazamento de questões do pré-teste e diversos erros na correção da prova de redação. Em 2013 consideraram-se irrelevantes os pecados ou cochilos “enchergar”, “trousse”, “rasoavel” e gritantes erros de concordância verbal. O mais triste, o tragicômico, albergados em redações avaliadas com a nota máxima. Lastimável foi a explicação dada pelo INEP, instituto do MEC que aplica o Enem, coordenado por professoras apresentadas como doutoras em linguística, para as notas máximas aplicadas: "o que importa mesmo é que o candidato tenha um excelente domínio do português, mesmo que ele cometa pequenos desvios gramaticais." (sic) Mas que procedimento canhestro de tão insignes pensadores! Uma afronta ao extenuante labor do professorado que se esmera na formação de seus discípulos, um desestímulo ao aluno diligente. Um retrato da caótica situação em que se encontra o ensino público secundário. Infere-se que o aluno possa estar sedimentado no direito de fazer motejos, respaldado, honrosamente, pelo ENEM.

E a folgança não cessa. Instados pelo exame a discutir o tema imigração para o Brasil, candidatos foram coerentes com o que se afigura: um enxertou no texto uma receita de macarrão instantâneo – Carlos Guilherme Custódio Ferreira, 19 anos, mineiro (e não é italiano), enquanto outro colocou trecho do hino do Palmeiras. O primeiro obteve nota 560; o segundo, 500, numa escala que vai até mil. O Ministério da Educação afirmou que os estudantes entenderam a proposta e não fugiram ao tema. Por isso, não tiveram as dissertações anuladas. Quem sabe o preconizado seja o do quanto pior, melhor?

Parece-nos que não é apenas jogando pedras que construiremos muros invioláveis. Não se o negue a fragilidade do sistema pelo gigantismo que abarca. Como é visível, um ponto na média final pode ser definitivo a candidatos que postulem, por exemplo, medicina. Muitas sugestões, viáveis ou não, foram propostas, até porque, a continuar assim, se a redação for eliminada, o que seria lastimável, extinguiríamos o alvo de tanta celeuma. A bizarrice leva-nos a complexas reflexões: tirar o bode da sala, vender o sofá? Naturalmente, cabe ao MEC e a seus eméritos profissionais definir novos e eficientes rumos e não apenas encontrar pífias desculpas aos disparates.

Tememos que, caso sigamos navegando ao sabor do mesmo caudal, tenhamos, em breve, mais um compêndio a ser apreciado: Antologia das ratas propiciadas pelo ENEM. Enquanto isso, continuamos brincando com a “educação”.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - abril de 2013

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 09/04/2013
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