Dicas para uma boa redação - 4 (uma história verdadeira e a Teoria do Conhecimento)
O texto a seguir é uma contribuição de uma amiga, Matilde, excelente professora de Filosofia, homenageada e respeitada pelo conhecimento e pela educação. Ela conta como aprendeu a escrever:
Instada pelo Professor Eduardo Castro a escrever sobre nossas conversas acerca da dificuldade dos alunos tecerem um texto, resolvi, eu que procuro o que fazer, já que estou aposentada, enfrentar a tarefa por ele proposta.
Aprendi a escrever desde minha tenra infância, e aprendi em uma escola pública, o Grupo Escolar José Paranaguá, que funcionou no local onde hoje se encontra o Conselho Estadual de Educação (Manaus, Amazonas).
Hoje mesmo o Professor Eduardo me falava:
- O problema é que, para os alunos aprenderem a escrever, precisam primeiramente ordenar o próprio pensamento.
Como “o pensamento sem a língua é uma massa amorfa e indistinta”, segundo Ferdinand de Saussure, se pensamos mal é por não termos as significações da língua de modo preciso para formar, em primeiro lugar, o pensamento, expressando-o oralmente, e secundariamente escrever o que pensamos.
Vários exercícios nos ensinaram desde a infância. A leitura de alguma estória, conto de fadas, almanaque do Eucalol (um sabonete da nossa infância que distribuía um almanaque, como também o do Capivarol), gibi (Fantasma, Vida Infantil, Vida Juvenil, Tarzan, Epopéia, Edições Maravilhosas e outros livros em quadrinhos) foram instrumentos de organização do nosso pensamento, se não pela gramática correta (é preciso saber que antigamente se escrevia nos quadrinhos com correção), pelo menos porque nos ajudava a entender uma estória com começo, meio e fim. Isso é importante: lermos textos que tenham um motivo, uma continuação desenvolvendo um tema e uma conclusão.
Aprendi na Teoria do Conhecimento que em primeiro lugar, para promovermos uma pesquisa, temos que ter curiosidade sobre algo, perguntarmos sobre alguma coisa tentando desvendar o que nos interessa. Ora, o que nos leva à curiosidade? Estarmos atentos ao mundo. Claro que quando se trata de pesquisa científica não se chega à curiosidade com certa possibilidade de respondermos a ela, se não tivermos algum conhecimento teórico sobre o assunto, uma compreensão que nos leve a perguntar. Mas não se chega à ciência sem palmilharmos o mundo cotidiano do aprendizado nas escolas. Por isso, antigamente nos faziam realizar dois exercícios. O primeiro, a descrição oral do que se visualizava e o segundo, a descrição por escrito.
Como eu dizia acima, a Teoria do Conhecimento me ensinou uma espécie de hierarquia de compreensão da realidade para torná-la conhecida: em primeiro lugar vem a descrição, logo após a análise do que se descreve, depois vem a síntese, que é a compreensão do todo, por fim pode haver a crítica do que se descreveu.
A professora da minha infância, quando nos mandava descrever um quadro, nos ensinava algo como as categorias aristotélicas (que tenho certeza que ela desconhecia): tempo, espaço, posição, ação, reação, causa, efeito e assim por diante. Lembro-me do quadro que mostrava uma senhora sentada na cadeira de embalo fazendo tricô, duas crianças jogando bola e um gato deitado enroscado ao lado. A “dica” da professora era descrever o ambiente, as pessoas, o que as pessoas faziam, onde elas estavam situadas e sua posição (em pé, deitado, à direita, à esquerda, atrás, à frente, sobre...).
Após muitas descrições (terceiro ano primário) a professora nos mandava imaginar uma paisagem e descrevê-la. Já era um passo adiante, não se tinha mais o visual, entretanto já havíamos treinado bastante a descrição do quadro dado, apresentado aos nossos sentidos. Agora, teríamos que imaginar.
Mais tarde era-nos oferecido o exercício da chamada redação. Redigir uma carta era o texto mais comum nesse particular. No terceiro ano primário não dava para redigir um relatório ou algo semelhante. Já na quarta série teríamos a tarefa de fazermos uma “composição”, algo diferente como “um dia de sol”, “uma festa de São João”, temas bem concretos, quando nós juntávamos tanto o que tínhamos feito na descrição de um quadro visualmente apresentado, quanto de uma paisagem imaginada. Só que, ao compormos um texto, era uma estória que inventávamos, descrevendo não uma situação estática, mas sim algo ocorrido temporalmente, com começo, meio e fim.
Bem mais tarde vinham os temas mais abstratos como “a amizade”, “a gratidão”, “um sonho de férias”, “o que quero ser quando for adulto”...
Na descrição é possível termos o todo, a análise das partes, a referência das partes no todo. Se fizermos esse exercício estamos organizando o pensamento do aluno.
Se nossos alunos atuais, já na Universidade, não fizeram tais exercícios antes, podemos começar tudo agora, mesmo que de forma mais adulta.
Por exemplo, um filme mais ou menos singelo como o do brasileiro que ganhou na mega sena e “torrou” tudo, voltando não a ser pobre, mas um sujeito com débitos fantásticos. Pode-se começar com a descrição linear do filme, focando somente a trama, feito oralmente. Podem-se considerar, mais tarde, em outro bate papo, aspectos mais aprofundados da trama: a inveja, a arrogância que o dinheiro inflama; a irresponsabilidade do pai e da mãe... O apoio da família; as consequências da irresponsabilidade. Tudo isso são temas que podem ser tratados oralmente e, em seguida, por escrito.
Quanto à escrita, ensinaram-me que o modo mais simples de fazê-la é o sistema delta (letra grega), que são três momentos: a) um tema proposto, b) duas ou três análises possíveis com suas explicações e c) uma conclusão: ou optando por uma das respostas ou aceitando todas ou propondo sua própria explicação a guisa de conclusão.
Outro modo mais complexo é, ao propor o tema, explicar cada um dos conceitos contidos no tema ou cada uma das palavras que o compõem.
Por exemplo: “A TV informa, forma ou deforma”.
Explicar cada um dos elementos que compõem a pergunta seria dizer em que consiste o papel da TV como informação, como formação e deformação. Por que e quando ela informa, quando e como forma, como e quando deforma? Ao analisar cada parte da questão você coloca um trilho condutor por onde transitar.
Quem tem pouca facilidade em escrever, elabore parágrafos pequenos, com sentido completo. Procure o sujeito das suas orações, o predicado, veja se o plural está correto, se há erros na conjugação dos verbos.
Não esqueça os conectivos. As conjunções são de importância capital na compreensão das ideias, já que são elementos de ligação entre orações, frases, parágrafos. O discurso é tecido dessa forma, com adições (o “e”, por ex.), alternativas (ou, por exemplo), pensamentos adversos, concordantes... e essas fases do discurso têm palavras adequadas para expressar o que se quer dizer, tanto oralmente, quanto por escrito. Consulte a tabela das conjunções.
Estudar as classes de palavras (quando eu estudei chamavam-se “categorias gramaticais”) é importante para reconhecermos um substantivo, um adjetivo, um pronome, o verbo, um advérbio, uma conjunção... Cada uma dessas palavras tem um lugar na significação que queremos dar ao nosso discurso.
Não esqueça nunca de armar um trilho para seguir quando tiver que escrever algo. Vou escrever sobre a devastação da floresta? Como começar?
"Lembram-se da música 'o índio chorou, o branco chorou, o meu pé de sapopema de repente virou lenha, ai que dor, ai que horror'!
Essa canção descreve a devastação da floresta com as queimadas, a derrubada das árvores para fazer campo de pasto, para plantar soja, para fazer dinheiro. Descreve a dor e o horror da devastação, sentida por aquele que ama sua terra. Árvores de mais de cem anos cortadas para transformá-las em dinheiro.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Mas a vida que morre em cada árvore cortada, não significa coisa alguma?
E a vida do planeta afetada profundamente pela desordem da devastação?
E nossos filhos, netos, bisnetos, o que herdarão?
Um mundo pior que este herdado por nós?
São essas perguntas que faço.
E, não querendo só cantar 'ai, que dor' mas, lutar para um futuro ecologicamente responsável, vou em frente trabalhar por um mundo sustentável”.
Eis aí um texto simples, sem exibição, com começo, meio e fim.