QUANDO SE AMARRAVA CACHORRO COM LINGUIÇA (Ditos populares 3)
QUANDO SE AMARRAVA CACHORRO COM LINGUIÇA.”
Orgulhava-se de seu nome: Terêncio. O substantivo configurava, emocionalmente, a intrepidez de lendários tauras pampeanos. Soava forte. Sibilava como o minuano acossado pelas chuvas intermitentes. A matiz: um avoengo paterno. Afirmava, de si para si, assentando a negra melena, faceiro como mosca em tampa de xarope, que os centauros, pelo nome, impõem respeito. Dentre os seus, a mãe, Jovelina, o chamava, carinhosamente de “cicinho”. O apelido, mesmo a contragosto, pegou. Quando a invocação era de “seu” Cicinho, especialmente na pulperia, e faziam-na de propósito, considerava depreciativa: era cutucar onça com vara curta. Ficava mais raivoso que gato a cabresto ou potro com mosca no ouvido. Mas que fazer? Engolia a raiva e, vezes sem conta, deu um boi para não entrar numa briga, pois sabia que se entrasse, daria uma boiada para não sair.
Cedo deixara o colégio – légua e meia das casas. Duas salas pequenas, cortinas desbotadas e encardidas, em branco e verde, ocultavam dois ou três espaços há muito sem vidros, modesta biblioteca, a cozinha com limitados recursos e generosas goteiras. A “casinha” tinha a companhia de uma figueira. Dia de chuva ninguém ficava “apertado”. Um baiozito, mansinho como gato de solteirona era o parceiro de estrada. Ainda que gostasse de dona Eufrásia, a professora, enredava-se no aramado das letras. Perdia-se nas íngremes picadas matemáticas. O bom mesmo era o recreio e a merenda. Várias vezes fora advertido pelo uso do bodoque e por rusgas nas peleias esportivas...coisas de piá! Taludito, justificava, vexado, que ovelha não é pra mato: os pais careciam de seus braços. Mesmo assim, não se apertava por pouca coisa. Não entregava a rapadura às formigas. Tinha consciência de que boi lerdo bebe água suja e o olho do dono engorda a boiada. Aprendeu a ler e escrever e fazer umas contitas. Prá que mais? Abstraia-se nas aulas de História. Defendia, gineteando ilusões, os ideais farroupilhas. Tomou gosto pelo mate, cevando canções galponeiras.
Era o mais moço dos três filhos: dois machos e uma prenda. Os mais velhos, antes que dessem com os burros n’água, bandearam-se para o povoado. Sem delongas, constituíram família. Não foram feitos para viver no campo. Mano Ermenildo, apadrinhado por políticos, arranjara-se na prefeitura. Pouco fazia, mas... Embora com os cobres contados, vivia contente como cusco de cozinheira e, quando tomava uns tragos,ficava faceiro como tico-tico na chuva. Merência, a cunhada, revelara-se excelente boleira. Ria à socapa e era mais vaidosa do que égua com dois potrilhos. Um piazote fazia as entregas quando lhe folgavam as lições escolares.
Pela estrada de chão batido as carretas gemiam. Nas invernias de agosto os caminhos tornavam-se intransitáveis. As enchentes, em especial de Santa Rosa e São Miguel, não respeitavam nem mesmo os pontilhões. Tropeiros jamais poderiam gabar o burro antes de passar o barro. Gaudérios de ofício chegaram a ficar num mato sem cachorro. Ao cabo, a lição de que em baile de cobra só se dança de perneira.
Maria Rita, “Ritoca”, herdara da mãe os meandros das lides domésticas. Cozinhava, costurava, bordava, trazia a casa em ordem: moça prendada. Elogiada pela irresistível broa de milho, ambrosia, bolinhos de chuva, linguiça, arroz de carreteiro, e delícias da culinária campesina. Sua beleza não ficava indiferente a inúmeros pretendentes. O pai a trazia de rédeas curtas. Conhecera um caminhoneiro numas bodas de casamento. Dez anos mais velho, entretanto de guaiaca recheada. Amor no primeiro pealo. Tiro dado, bugio deitado. Como não conheciam, opuseram-se. Ficou contrariada como gato a cabresto. Depois de algum tempo, dobrara os velhos troncos. Ficara feliz que nem lambari de sanga. Evidenciava a alegria de quem vira passarinho verde.
Em datas especiais os Amaral se reuniam na pequena propriedade em que ainda floresciam raízes de antanho. Dona Jovelina e o companheiro Getúlio mostravam sinais de que o tempo passara. Foram-se os dias de amarrar o boi pelo chifre. O cabelo se entordilhara. Os ombros carregavam o peso de quase oitenta invernos. A face perdera o viço, e a locomoção tornou-se lenta: dor nas costelas, lumbago. Sobre a velha cômoda um frasco de afumentação: álcool, arruda, fumo e mais meia dúzia de ervas. Mas, a fé é o melhor remédio. Mesmo assim, os progenitores estavam bastante lúcidos: Casco de boi velho, onde senta, não escorrega. Total, a carreta da vida precisa rodar – ainda que o galo não cante, a manhã sempre rompe. Tivera, como tantos, seus dias de ganso novo em taipa de açude.
Terêncio foi-se deixando ficar pelas casas. Resmungava pelos cantos. Dividia as lides de campo, o pastoreio, a plantação e a ordenha com um casal de mulatos que era parte da família. Gente buena, de confiança. Assimilara, desde piazito, o gosto e a habilidade pelas artes campesinas. Aprendera, na cartilha da vida, que cachorro comedor de ovelha late até em pelego e cobra que não anda não engole sapo. A prudência sovara os pelegos e o ensinara que de grão em grão a galinha enche o papo. Adormecia e despertava com o ponche da liberdade. Não conhecera e não pretendia saber o que é patrão: cão de raça, não usa coleira. Defendia o mesmo pensamento em relação às mulheres.
Aos domingos, afeitava-se com esmero, atento à afiada navalha que ganhara do avô. Engraxava, com sebo de ovelha, as botas de cano alto, feitas sob encomenda, só usadas em dias de festa, velórios, eleições e quando ia ao povoado renegociar dívidas bancárias ou comprar remédios. O povoado o sufocava. Ficava mais perdido que cusco em procissão. A glostora sedimentava o cabelo rebelde. E umas gotinhas de “amor gaúcho” despertavam vaidades. Pilchava-se co’ua bombacha cinza, com favinhos de abelha, e camisa branca. O farto lenço de seda, branco, caia-lhe ao peito sem que identificasse ideologias políticas. Um sombreiro caramelado, com barbicacho de prata, dava-lhe ares de caudilho. Sentia-se mais Terêncio do que nunca. Domingo sim, dia de pencas no Passo do sobrado.
Nas carpas, atraentes chinocas, soltas de língua, sob o olhar de mães e avós, comercializavam apetitosos pastéis, empadas, croquetes, bolos e “rodas de carreta”. A cerveja afugentava a timidezda indiada, trazendo o riso farto. Muitos beberiam o próprio limite. Cambaleantes, à meia guampa, confiavam no cavalo que sabia o caminho das casas. Cavalo castanho escuro pisa no mole e no duro, e traz o dono seguro. Sabia-se, também, que cavalo de campo não come pasto cortado nem bebe água de balde.
A Congregação de Nossa Senhora das Graças permitia-se, co’a dedicação abnegada de fiéis, dizer-se presente. O prédio da igreja sempre carecia de reparos. Padre Libório reservava uma bênção especial aos obreiros: casais, viúvas e moçoilas que permutavam olhares casamenteiros. No sermão, costumava-se enfatizar que a aranha vive do que tece, e quem seu carro unta, seus bois ajuda. Não comercializavam bebidas alcoólicas: violentariam os dogmas ecumênicos: etílicos somente nos ofícios religiosos. Contudo, vendiam vinhos e licores artesanais a serem consumidos longe de puritanos olhares.
Terêncio, há muito, deixara-se pealar por uma laçada de amor: Alvarinda, prima pelos costados maternos. Formavam par nas milongas fandangueiras. Havia reciprocidade. Comedidamente, negaceavam-se. Como pedir sua mão? Logo de uma prima? Ouvira comentários sobre incompatibilidade genética, filhos defeituosos. Mas o índio velho já não era mais criança. Nervoso como gato em dia de faxina, precatou-se e foi solicitar permissão, não apenas para um simples namoro, e sim a noivado e em dois meses casamento. Já possuía o rancho montado, portanto...
O dia do enlace chegara. Aos poucos, o fogo se alastrara para o churrasco. Não faltaram doces e salgados, armazenados em latas de banha. Mais perdido do que cupim em metalúrgica e nervoso como gato em dia de faxina, o noivo demonstrava inquietação. A comemoração limitara-se a familiares e alguns amigos. Quando a noite apeou na serra, o casal recolheu-se aos aposentos.
Na brancura dos lençóis, não floresceram rosas virginais. A camisola ficou intocável. Terêncio afastou-se em silêncio, sempre fora homem de poucas palavras. Entorpecido na ira e na traição, dimensionando as consequências do aviltamento da honra, pôs fim à vida, atrás do velho galpão. Alvarinda mantivera em segredo a perda da castidade.
O impacto fora além do aceitável para um taura daquela estirpe. Mesmo que não haja cavalo, por bom que seja, que não tropece, era muito forte para um cuera com o nome de Terêncio, nome de centauro. A moral, como um fio de bigode, era documento imaculado.
Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - outubro/ 2012