1- O poema Retrato, de Cecília Meireles, foi apresentado aos meus alunos várias vezes durante minha atuação como professor.
 
Gostaria de dividir com os senhores uma reflexão interpretativa sobre os versos desse poema tão fascinante.
 
Primeiro vou destacar o lindo e comovente poema.
 
        
Retrato         (Cecília Meireles)
 
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
 
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
 
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
_ Em que espelho ficou perdida
a minha face?
 
2- Lendo o poema, percebemos o Eu poético fazendo um autorretrato, ou seja, realizando a descrição de si próprio.
O Eu poético apresenta suas características psicológicas citando partes do corpo humano.
 
Uma breve observação logo faz a gente concluir que a descrição não está enfatizando o físico.
Os adjetivos utilizados revelam isso com clareza.
 
Os versos inicialmente estariam descrevendo os olhos e lábios, as mãos e a face, podendo parecer uma verificação meticulosa feminina resultante da vaidade.
Os adjetivos seguintes, bem avaliados, não permitem que tal idéia seja mantida.
Faria até sentido dizer “rosto magro” quando a pessoa notou que o tempo tirou o vigor físico do rosto antigo, revelando uma aparência desgastada.
 
Essa análise carece de sentido, porém, se pensamos nos outros adjetivos.
 
Vazios, amargo, paradas, por exemplo, eliminam qualquer dúvida quanto a uma descrição puramente física.
A leitura de coração que nem se mostra e a indagação final questionando onde ficou perdida sua face ratificam esse entendimento.
 
Enfim, não é nada difícil deduzir que a descrição se refere a detalhes do íntimo os quais são expostos com imensa beleza e profundidade mencionando partes físicas bastante conhecidas.
 
3- Vejamos agora o conteúdo que os versos revelam.
 
Se fosse possível resumir o recado do poema, diríamos que a motivação, vontade e alegria de outrora foram completamente perdidas após as primaveras vivenciadas pelo Eu poético.
 
As expressões rosto calmo, triste e magro são esclarecedoras demais.
Quando alguém fala com empolgação, o rosto parece brilhar.
Isso não existe no rosto da pessoa que está efetuando a descrição.
Ela apenas expressa tristeza e não transmite o mínimo de disposição através do seu rosto, pois não sente entusiasmo algum. 
 
Os olhos são vazios.
Diferentes são os olhos de alguém apaixonado quando visualiza o ser o qual suscita sua afeição; uma terceira pessoa logo identifica que aquele olhar confirma um interesse acentuado.
No poema os olhos definem que nada consegue causar o menor alento capaz de gerar qualquer ação.
A pessoa precisa preencher suas lacunas interiores, necessitando alcançar a inspiração para perseguir uma meta, evitando que a vida permaneça com cores tão sombrias e lastimáveis.
 
mãos sem força revela uma personalidade bastante desanimada, sem vontade de agir.
As ocorrências e os fatos soam como irrelevantes. 
Há apatia, desinteresse e indiferença.
 
A expressão coração que nem se mostra vem reforçar esse estado deveras infeliz.
Mostrar o que sente e o que deseja não interessa.
A pessoa só consegue sentir desalento e mal sabe se quer algo.
Talvez seja melhor ficar calada, pois os seus lábios são amargos.
As palavras que disser provavelmente só ressaltarão pessimismo e desencanto.
 
4-  Em que espelho ficou perdida a minha face? pode significar Quando eu mudei tanto assim? Em que momento aquela pessoa tão animada e alegre desapareceu? Em qual instante minha alma sofreu essa transformação desagradável?
 
Imaginamos que a pessoa seguiu desatenta a tais mudanças, se deixou levar passivamente pelas intempéries e eventuais desilusões, chegando a esse instante no qual ficou até difícil perceber quando toda essa tragédia iniciou.
 
Talvez possamos supor o acontecimento que desencadeou a mudança forte e marcante que atingiu o Eu poético.
 
Houve uma desilusão amorosa?
Aconteceu a perda de um ente-querido?
A vida apenas ofereceu amarguras somadas a aflições?
Existiu um acúmulo de tristezas e problemas que arrasaram a individualidade?
 
5- Saber exatamente o motivo não é o principal, mas refletir sobre a nossa jornada, o que estamos aproveitando dela e indagar se não corremos o mesmo risco, depois de analisar o poema, é válido considerar.
 
Talvez conheçamos alguém que um dia vendia excesso de bom humor, contudo hoje é apenas o reflexo do abatimento total.
 
Penso que os versos acima podem instigar uma retomada, uma renovação, uma nova direção se há sinais apontando que, no porvir, podemos conhecer o cenário vislumbrado no poema.
É fundamental parar e refletir sobre a vida, as nossas ações, nossos relacionamentos e os desafios que a existência nos oferta agora.

Assim estaremos sempre prevenindo lastimar o amanhã por não possuir mais um rosto agitado e animado, olhos repletos de esperança e projetos, lábios doces e gentis, mãos enérgicas e vivas ou um coração pulsante e corajoso.
Dessa forma jamais permitiremos que a nossa face perca o entusiasmo, vital para avançar, nunca desistir e sempre conseguir reconstruir.
 
Eis a minha interpretação sobre esses versos maravilhosos, produzidos pela cativante e magnífica poetisa Cecília Meireles.

Um abraço!
 
                                                                                                             
 
 
 
 
Ilmar
Enviado por Ilmar em 01/09/2012
Reeditado em 03/09/2012
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