"Mas oigatê como é brabo esse tal de mês de agosto!"
“Mas oigatê como é brabo esse tal de mês de agosto!” Luís Menezes
Por certo, face à multiplicidade gráfica de muitas palavras de nosso idioma, foneticamente idênticas, e com significado distinto, salvo que tenhamos domínio do pátrio saber, não são poucas as vezes que hesitamos quanto à grafia.
Tomemos como ponto de partida as “palavras homônimas”: aquelas que possuem grafia ou pronúncia igual. Exemplifiquemos: Luís não compareceu à ‘sessão’ da última semana./ Este equipamento pode ser encontrado na ‘seção’ de eletrodomésticos./ Após longos anos, o patriarca fez ‘cessão’ (doação) de seus bens./ O edital encontra-se nas dependências térreas do ‘paço’ (palácio) municipal./ Ao perceber que a chuva começara, apressou o ‘passo’.
Os fonemas, nem sempre, possuem valor distintivo. Ao falarmos, um único fonema pode realizar-se de diversas formas, ou melhor, representar sons variados. Essa particularidade linguística recebe a denominação de variantes combinatórias ou alofones. Caso típico ocorre com ‘mal’ [‘maw] (grande parte do Brasil) e [‘mal] (Sul do Brasil).
Persistem dúvidas no emprego dos sufixos –ES, –ESA, –EZ, – EZA, –ISA, verbos terminados em –ISAR, –IZAR, palavras com J ou G, S ou Z, X ou CH, Ç,S, SS. Nem mesmo o berço de nascimento é credencial para tomar-se um único procedimento gráfico. Muitos vocábulos somente se incorporam ao nosso patrimônio após navegarem por expressivos e longínquos caudais. Restam-nos, a fim de que minimizemos os entraves, normas, dicas, ‘macetes’, sujeitos à contestação. Não resistem, é notório, à excepcionalidade.
Agregam-se ao elenco, embora com tonalidades distintas, as “Formas Gráficas Variantes”.
Examinemos, inicialmente, ‘bravo’ e ‘brabo’ (do latim medieval bravus/barbarus). A diferença fonológica não reside apenas na consoante inicial da última sílaba O primeiro a ingressar na língua foi ‘bravo(a)’, a significar: bravio(a), não-domesticado(a), irritado(a), ou ainda valente e corajoso(a). Com a última acepção, vamos encontrá-lo no Hino da Independência do Brasil “Brava gente brasileira/ longe vá temor servil;” no hino do Rio Grande do Sul “Mas não basta pra ser livre/ ser forte, aguerrido e bravo/ povo que não tem virtude/ acaba por ser escravo.” Cecília Meireles verseja em Despedida: “Por mim, e por vós, e por mais aquilo/ que está onde as outras coisas nunca estão,/ deixo o mar bravo e o céu tranquilo:/ quero solidão.” Paulo Coelho recomenda em Diário de um mago: “Não queira ser bravo, quando basta ser inteligente.”
Quem recorrer aos dicionários observará que ‘bravo’ e ‘brabo’ possuem significados distintos. ‘Bravo’, isoladamente, corresponde a magnífico. Manifestação usual ante soberbas execuções ou interpretações artísticas.
As Formas Gráficas Variantes, ou seja, a alternância entre dois fonemas, surge em pares como ‘assobiar’ e ‘assoviar’, ‘bergamota’ e ‘vergamota’, ‘piaba’ e ‘piava’ dentre dezenas. Escritores portugueses atestam que ainda hoje, no Norte de Portugal, ouve-se ‘binho’, ‘barrer’ e ‘bento’. Atente-se a uma das redondilhas camonianas onde encontramos ‘bívora’ no lugar de ‘víbora’.
‘Brabo’ surge como variante regional, sem que haja diferenças semânticas. Capistrano de Abreu aludiu a “índios brabos”; Camões, “ventos bravos”; o extraordinário Antônio Vieira refere-se a “todos os animais, por bravos e feros que sejam, temerão e tremerão do homem”; e o lírico vate Tomás Antônio Gonzaga, no imortal Marília de Dirceu, verseja “Pombinhas mansas,/ Bravos leões”. Encontramos, nos versos de Manoel Bandeira, em Vou-me embora pra Pasárgada: “Andarei de bicicleta/ Montarei em burro brabo/ subirei no pau-de-sebo/Tomarei banhos de mar! Brabo aparece com o sentido de bravo, rebelde, feroz. Um escritor cearense registra: “A inflação voltou e a vida do trabalhador está braba!” (situação muito ruim), “O pai da moça é brabo, é bom não se meter com ele!” (de bravo, naturalmente).
No Rio Grande do Sul, diferenciando-se de alguns estados, ‘brabo(a)’ veste-se com indumentárias tipicamente regionais. Vamos encontrá-lo em: A mandioca venenosa é ‘braba’ (tóxica); Atravessamos um período ‘brabo’ para a economia (difícil); Pelo visto, esse inverno vai ser ‘brabo’ (intensidade de frio e chuvas); Depois de tanta espera, serviram-nos apenas um cafezinho ‘brabo’ (frio, talvez sem açúcar; aguado, sem acompanhamento); Depredaram, impiedosamente, diversos prédios: eta gente ‘braba’! (desqualificados, infratores); Somente uma estrada ‘braba’ não desafoga a economia do município (falta de trafegabilidade, insuficiência): Mesmo bem vestida, usava um perfume ‘brabo’ (de má qualidade). O pai da modelo é bonito, mas a mãe é ‘brabinha’ (sem beleza). Quando agregada ao substantivo boca, adquire também significados próprios – Tenha prudência, para não cair nas malhas do boca ‘braba’ (crítico voraz). Aquele bairro, na zona norte da cidade, é boca ‘braba’ (impera a violência). Elevar-se àquela altura, sem proteção, é ‘boca braba’ (sujeitar-se a riscos).
No dicionário da cadeia vamos encontrar ‘gato brabo’, significando ladrão que sobe em telhados. Dentre nossos ditos e expressões campeiras, arrolam-se: ‘mais brabo que cachorro sem osso’, ‘mais brabo que mutuca’ e ‘brabo’ como uma manga de pedras (João Simões Lopes Neto em Contos Gauchescos – Trezentas Onças). A palavra está presente na grande parte do cancioneiro crioulo. Lembremos a composição de Guide Grande e Walter Moraes, Criado em galpão, gravação dos Serranos: Gosto do cheiro do campo/ e do sabor do chimarrão/ e de dobrar boi brabo/ a pealo nos dias de marcação.
Não podemos esquecer que as consoantes “b” e “v”, por serem fricativas, são facilmente permutáveis.
Do ponto de vista semântico, é esperável que, a partir de uma base, adjetival, ocorra a formação de um verbo causativo. É o que sucede com ‘embravecer’ que é registrado desde o século 16. Dada a polissemia de ‘bravo’, é necessário esclarecer que se trata de um causativo de bravo, sinônimo de feroz. O outro valor semântico de bravo (‘valente’) não gera verbos desse tipo, mas há um derivado de ‘bravo’, que persiste na forma ‘esbravejar’ e se relaciona com o valor exclusivamente humano da ferocidade, dado que se refere a um particular uso da língua, que é gritar a... O verbo ‘bravatear’ derivado do empréstimo nominal “bravata” e não de ‘bravo’, está semanticamente relacionado com a sua base (podendo ser parafraseado por gabar-se) - feroz, relativo a animais; selvagem, relativo a plantas; inculto, relativo a solos.
Portanto, Macedo pode ser ‘bravo’ e não estar ‘brabo’. Pode não ser ‘bravo’ e estar ‘brabo’. Pode ser ‘brabo’ e estar ‘bravo’ e pode não ser “brabo” e não estar “bravo”.
Encontramos na literatura personagens que ficam ora bravos, ora brabos. Na formação de derivados, contudo – ao menos no Rio Grande do Sul – notam-se sinais que prenunciam adoção exclusiva de brabo com a acepção de ‘irritado’, ‘furioso’. Empregamos ‘bravura’ (e braveza, hoje menos usado) ao fazermos referência ao homem destemido, ou ao animal feroz, preferimos ‘brabeza’.
Aproveitemos o ensejo para destacar que muitos creem que são formas variantes ‘vasculante“ e ‘basculante’. ‘Basculhante’ e ‘vasculhante’ significam [que limpa ou varre com vasculho]. ‘Basculante’ tem significado e origem diferentes [que opera com movimento de básculo (peça móvel de metal ou ferro que gira apoiada num pino, destinada a abrir ou fechar ferrolhos de porta, janela], do francês ‘basculant’. ‘Vasculante’ estaria ligado a vascular (referente a vasos, em especial a vasos sanguíneos).
Nossos melhores dicionaristas registram as grafias de ‘gengibirra’ e ‘jinjibirra’ (cerveja feita de gengibre), recomendando uso preferencial à primeira. O fenômeno linguístico é muito raro. Assemelha-se, embora com reservas, a ortografia, segundo o Dicionário Aurélio da língua portuguesa, no português o correto é ‘berinjela’ com (j) e em Portugal, ‘beringela’ com (g), é evidente que germinam em solos distintos.
Se nos é dada a liberdade de opinar, permitam-nos, respeitando posições contrárias, mesmo que ‘brabo’ e ‘bravo’ tenham significados próprios, reconhecer que, às vezes, aliam-se num só sentimento bravura e brabeza.
Jorge Moraes – jorgemoraes_pel@hotmail.com – julho de 2012