"O ginecologisto" da Presidenta
O ‘ginecologisto’ da Presidenta
É de conhecimento público, a romper com o alheamento até mesmo dos leigos e indiferentes aos caprichos e inovações linguísticas, provocando jocosas celeumas e comentários desairosos, que sua excelência a até então ‘presidente’ Dilma Rousseff, uma vez empossada no Palácio do Planalto, vem recomendando ou exigindo que os veículos de comunicação tributem-lhe a referência ‘presidenta’.
Não têm sido raros os posicionamentos exacerbados dos que se intitulam donos do pátrio idioma, a encontrar, naturalmente, subsídios e alicerces, nem sempre lógicos ou coerentes para a edificação de seus postulados. A matéria havia arrefecido, e agora em maio de 2012 retorna vicejante e impetuosa, sem perspectivas de contestação.
À margem de mazelas flexionais fônicas ou afônicas, não faltaram declarações a insinuar que o arroubo revela, quem sabe, característica de uma vaidade feminina, da prepotência do poder, talvez da honra do pioneirismo, dentre uma dezena de subjetivos e controversos arrazoados. O curioso é que temas, por certo de bem maior relevância, pertinentes ou indiferentes ao idioma, não mereceram tamanha notoriedade e prontidão. Mesmo que devamos examinar a questão ortográfica e culta da língua portuguesa, não podemos cerrar os olhos a uma proposta ideológica numa sociedade altamente hierárquica e machista. Saliente-se que em inglês, a senhora Dilma é chamada tanto de “President” quanto de “female President”.
De pronto, doutos defensores de nosso patrimônio linguístico, alicerçados em colunas filológicas, fundamentaram-se na existência dos particípios ativos como derivativos verbais. O particípio ativo do verbo visitar é visitante, atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante. O do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade. Assim o sendo, ao designarmos alguém com capacidade para exercer a ação que expressa um verbo, há que se acrescer à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte.
Em o sendo assim, a pessoa que preside é ‘presidente’, e não ‘presidenta’, independente do sexo. Emprega-se capela ‘ardente’, e não capela ‘ardenta’; usa-se ‘estudante’, e não ‘estudanta’; ‘adolescente’, e não ‘adolescenta’; ‘paciente’, e não ‘pacienta’.
Textos facetos execraram a mudança – “A candidata a ‘presidenta’ se comporta como uma ‘adolescenta’ pouca ‘pacienta’ que imagina ter virado ‘eleganta’ para tentar ser nomeada ‘representanta’. Esperamos vê-la algum dia ‘sorridenta’ numa capela ‘ardenta’, pois esta ‘dirigenta’ política, dentre tantas atitudes ‘barbarizantas’, não tem o direito de violentar o pobre português, só para ficar ‘contenta’.” Que maldade!
O professor Pasquale Cipro Neto destaca que as palavras ‘pedinte’, ‘agente’, ‘caminhante’, ‘dirigente’, de origem latina, apresentam a mesma terminação no particípio presente dos verbos portugueses, italianos, espanhóis, pois nasceram do mesmo ventre. E que noção indica a terminação -nte’? a de “agente”: ‘gerente’, quem gere; ‘presidente’, quem preside; ‘dirigente’, quem dirige. Pasquale ainda afirma que essas palavras têm forma fixa, ou seja, são iguais para o masculino e para o feminino; o que muda é o artigo (o/a gerente, o/a dirigente, o/a pagante, o/a pedinte). Em alguns exemplos (raros), o uso fixa como alternativas as formas exclusivamente femininas, em que o ‘e’ final cede lugar a um ‘a’. Cita como exemplo ‘parenta’, forma restrita ao gênero feminino e não obrigatória.
Respeitadas as exceções, temos por vezo seguir a tendência de criarmos a forma feminina como o uso da desinência ‘a’: menino e menina, professor e professora, cantor e cantora, espanhol e espanhola, elefante e elefanta. Dispomos também da opção “comum aos dois gêneros”: o artista e a artista, o jornalista e a jornalista, o atleta e a atleta, o jovem e a jovem, o estudante e a estudante, o gerente e a gerente, o tenente e a tenente. Há palavras que aceitam as duas possibilidades: o chefe e a chefe ou o chefe e a chefa; o parente e a parente ou o parente e a parenta.
Parece-nos, portanto, que não se trata de uma dúvida simplista de certo ou errado, e passa a ser questão de preferência ou de padronização. Permitam-nos lembrar que a acadêmica Nélida Piñon, quando eleita, sempre se apresentou como a primeira PRESIDENTE da Academia Brasileira de Letras. Patrícia Amorim, desde sua eleição, sempre foi tratada como a presidente do Flamengo. Destaquem-se que as formas ‘chefa’ e ’parenta’ ganharam carga pejorativa. É provável que a nossa Dilma ‘exija’ ser chamada de ‘presidenta’ segundo nossa vizinha Cristina, que gosta de ser chamada de La Presidenta.
As reformas ortográficas de 1943 e 1971 foram extremamente morosas. As mudanças que começaram a vigorar em 1º de janeiro de 2009 articularam-se desde 1986 e, embora delongadas, estiveram sob a óptica de nossas mais conceituadas e notáveis autoridades filológicas, a quem se reserva o direito de expressar os entraves e virtuosismos de nossos falares. Dessa vez, naturalmente, os “universitários” não foram consultados E NEM os obreiros das letras.
Assim como ‘presidente’ tornou-se ‘presidenta’, por que não poderemos ter, futuramente, num capricho presidencial, sedimentado no partidarismo genérico, a eliminação do ‘presidente’ e a imposição do ‘presidento’. Basta que o queira.
À guisa de esclarecimentos, recomendamos exame à LEI no 2.749, de 2 de abril de 1956, sob a presidência de Juscelino Kubitschek. Dá norma ao gênero dos nomes designativos das funções públicas. Destacamos
“O gênero gramatical desse nome, em seu natural acolhimento ao sexo do funcionário a quem se refira, tem que obedecer aos tradicionais preceitos pertinentes ao assunto e consagrados na lexeologia do idioma. Devem, portanto, acompanhá-lo nesse particular, se forem genericamente variáveis, assumindo, conforme o caso, eleição masculina ou feminina, quaisquer adjetivos ou expressões pronominais sintaticamente relacionadas com o dito nome.
Quanto ao tratamento à ‘presidente’, alguns adotaram a nova ortografia, outros não. A liberdade de escolha para flexionar o gênero, até em palavras que dispensam a flexão, ganhou recentemente novos nuances. O Diário Oficial da União publicou lei que obriga “As instituições de ensino públicas e privadas” a expedir diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido”.
A Lei no 12.605, de 3 de abril de 2012, sancionada por nossa mandatária, determina ainda que “As pessoas já diplomadas poderão requerer das instituições referidas no art. 1º a reemissão gratuita dos diplomas, com a devida correção, segundo regulamento do respectivo sistema de ensino”. O texto informa a decisão, justificando que “Técnica”, administradora e bibliotecária são alguns exemplos das grafias de profissões que devem ser utilizadas quando se tratar de graduada do sexo feminino.
A legislação pode se traduzir numa importante conquista aos que acreditam no poder de reforçar a ascensão feminina por meio de um recurso gramatical, entretanto, cremos que possam surgir algumas dúvidas quando da expedição do diploma. A flexão também se aplica ao masculino? Como devemos empregar o ‘jornalisto’, ‘o especialisto’, o ‘dentisto’ e por que não o “motoristo”? E vejam que são palavras masculinas, com a terminação “a” e pelo que se conhece jamais houve pretensão de alterá-las em se considerando o gênero do artigo definido.
Cofiando a barba farta, damo-nos ao luxo de imaginar, após quarenta anos de cátedra, como é fácil, com apenas uma “canetada” transferir aos “bem remunerados” professores a responsabilidade de transmitir a nossos educandos que nossos substantivos somente terminam em “o” e “a”. Rasguem-se livros e gramáticas que registram substantivos ‘comum de dois gêneros’ e ‘sobrecomuns’.
Pena que a mesma “caneta” não substitua, em se tratando de vencimento dos educadores, o adjetivo “humilhante” por “dignificante”. E parafraseando o imortal Chico Anísio nas máximas do professor Raimundo, lembremos “ Raimundo, vai comendo dessa massa! e o salário ó!
Jorge Moraes – jorgemoraes_pel@hotmail.com