REGÊNCIAS DIFERENTES COM MESMO COMPLEMENTO [OUTRO ENFOQUE GRAMATICAL]

A norma culta tem insistentemente rejeitado a associação de verbos ou nomes com regências diferentes ao mesmo complemento.

Exemplos:

“Li e gostei do livro.” [errado] — Quem lê, lê “algo” (sem preposição); quem gosta, gosta “de” (com preposição).

“Entrei e saí da sala.” [errado] — Quem entra, entra “em”; quem sai, sai “de”. (preposições distintas).

“Não concordei e rejeitei a proposta.” [errado] — Quem concorda, concorda “com” (com preposição); quem rejeita, rejeita “algo” (sem preposição).

“O engenheiro aprovará e trabalhará no projeto.” [errado] — Quem aprova, aprova “algo” (sem preposição); quem trabalha, trabalha “em” (com preposição).

Atualmente, porém, tanto na linguagem literária como na linguagem quotidiana, é bem corriqueiro constatarmos o uso de verbos e nomes que, conquanto constituídos de regências distintas, são expressos com apenas um complemento, contrariando o que recomenda a norma culta da Língua Portuguesa. Acerca desse inquietante tema, diz o festejado gramático EVANILDO BECHARA:

“Complementos de termos de regência diferentes — O rigor gramatical exige que não se dê complemento comum a termos de regência de natureza diferente. Assim não podemos dizer, consoante este preceito:

‘Entrei e saí de casa’

em lugar de

‘Entrei em casa e dela saí’ (ou equivalente),

porque ‘entrar’ pede a preposição ‘em’ e ‘sair’ pede a preposição ‘de’.

Ao gênio de nossa língua, porém, não repugnam tais fórmulas abreviadas de dizer, principalmente quando vêm dar à expressão uma agradável concisão que o giro gramaticalmente correto nem sempre conhece:

“Tenho-o visto entrar e sair do Colégio S. Paulo” [AH.5, I, 154];

“... que se deduz daí a favor ou contra o direito de propriedade literária ?” [AH.7, II,60].

Entendem certos autores a proibição aos dizeres em que duas ou mais preposições de sentido diferente, e até contrário, se referem a um só termo:

Com ou sem vantagem sairei

Antes e depois da luta

Para tais autores devemos dizer: ‘com vantagens ou sem elas’, ‘antes da luta e depois dela’, ou repetindo-se o substantivo como fez M. de Assis em:

“Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim” [Apud MBa.3, 103].

Salvo as situações de ênfase e de encarecimento semântico de cada preposição, como a que se depreende do trecho acima, a língua dá preferência às construções abreviadas que a gramática insiste em condenar, sem, contudo, obter grandes vitórias.” (Moderna Gramática Portuguesa, Editora Lucerna, 37ª ed., 2004, pp. 569/570).

Sobre o assunto, ensina também o grande filólogo e gramático ADRIANO DA GAMA KURY:

“Verbos de regência diferente coordenados.

Há preconceito injustificado entre alguns gramáticos contra o emprego do mesmo complemento referente a verbos de regência diferente que se coordenam; mas a realidade do uso nos revela que o escritor, neste caso, pode optar por uma destas soluções:

1.a) Atribui a cada verbo o seu complemento, de acordo com a regência de cada um, numa construção um tanto pesada:

“Entrava ‘em casa’ e saía ‘dela’.”

2.a) Atribui o mesmo complemento aos dois verbos, conforme a regência do mais próximo, obtendo, com isso, mais concisão e elegância:

“Continuou a entrar e sair ‘de casa’.” (Machado de Assis);

“Iam contar lá em casa que me haviam visto de madrugada, na Bica, entrando ou saindo ‘de tal lugar’.” (Gilberto Amado).

Um último caso de regência é o da preposição que, embora se prenda a um verbo no infinitivo, distante dela, se contrai, na corrente da fala, com o artigo que antecede o substantivo sujeito, ou com o pronome sujeito:

“... na hora ‘da’ onça ‘beber’ água, deu-me com o cotovelo.” (Graciliano Ramos);

“Encontrava-me em Roma em 1942, antes ‘do’ Brasil ‘entrar’ na guerra.” (Gilberto Amado);

“Chegou a vez ‘dele’ contar-me a sua vida.” (Gilberto de Alencar).

Também se pode separar na escrita a preposição:

antes ‘de o’ Brasil entrar na guerra;

Chegou a vez ‘de ele’ contar ...”. (Para Falar e Escrever Melhor o Português, Editora Nova Fronteira, 3ª reimpressão, 1989, pp. 211/212).

Das autorizadas lições de regência acima transcritas, extrai-se que, de fato, devemos evitar o denominado “preconceito linguístico”, haja vista que a língua é, realmente, viva e mutável.

É ou não cercada de mistérios nossa adorável e insubstituível Língua Portuguesa?

David Fares
Enviado por David Fares em 04/03/2012
Reeditado em 04/03/2012
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