A preposição "ne" !
Na escola aprendemos desde pequeninos o que é "crase". Crase é a fusão de suas vogais idênticas, diz o professor. Em "vou a escola" há crase porque na fala fundimos os "aa" (que seria 'vou a a escola') para um único "a". Como esse "aa", que é um fenômeno tipicamente oral que acaba influenciando a escrita, desaparece por conta da fusão, essa fusão composta por um único "a" precisa ser indicada por um sinal. É o acento grave, daí corrigimos escrevendo "vou à escola". Porém esse fenômeno da aglutinação não se esgota na crase. Nem nasce escrita.
Cientificamente conhecido como amálgama, este fenômeno é também uma fusão, porém não necessariamente de duas vogais. No francês ele ocorre quando a preposição "à" funde-se com o artigo masculino: à + le = au (pronuncia-se /o/ ) - Assim:
- pela comutação da preposição é possível recuperar o artigo: 'pour LE'
- pela comutação do artigo é possível recuperar a preposição: 'À la'
Em português, um exemplo de amálgama é a crase: a + a = à que:
-pela comutação da preposição é possível recuperar o artigo: 'com A'
-pela comutação do artigo é possível recuperar a preposição: 'A uma'
Outro exemplo de amálgama: de + o = do - em que:
-pela comutação da preposição é possível recuperar o artigo: "com O"
-pela comutação do artigo é possível recuperar a preposição: "DE um"
Há casos, no português, do amálgama opcional: em + um = num. É opcional porque pode-se dizer tanto "em um" quanto "num". E a este exemplo também se segue "de um" e "dum".
Outro caso: 'em + o = no' ou 'em + a = na'
em que:
- comutando a preposião, recupera-se o artigo: 'com O' ou 'com A'
- comutando o artigo, recupera-se a preposição: 'EM um' ou 'EM uma'
Entretanto há um caso curioso de amálgama: sabe-se que muitas crianças (basta ouvir nossas criancinhas falando) e até adultos dizem:
/ ele ponha a culpa ni mim /
/ ni qui que eu vi, eu fugi /
E cantam:
/ pinga ni mim ! /
É verdade que 'gramáticas' consideram esse "ni" um erro. Talvez ensinem que o certo seria dizer "ele ponha a culpa em mim". Talvez nem falem muito no assunto. O fato curioso decorre de que esse /ni/ é na verdade a recuperação indevida mas correta de uma preposição: só que aqui, diferentemente da norma culta, a recuperação da preposição ocorre a partir do amálgama pronto "na" ou "no", mas como a palavra seguinte, o pronome "mim" e a conjunção "que", não pedem artigo, a preposição intuída acaba desviando a vogal final para um "i" que é diferente das vogais-artigo "o" e "a' : ni.
Para ficar mais claro, o que houve nessa fala foi um amálgama de outro amálgama:
na + (x)= ni
no + (x) = ni - [em que "(x)" é a posição de artigo vazia].
Assim, para o amálgama /ni/ haveria uma falsa analogia:
-comutando o "artigo" recupera-se-ia a "preposição": NO (y)
-comutando a "preposição" recupera-se-ia o "artigo": na (X)
O fato é que nessa gramática este amálgama é construído conforme o gênero indicado por um artigo, logo:
Gênero feminino : - se 'A mesa', então pinga NA mesa
Gênero masculino: - se 'O cofre', então pinga NO cofre
Sem gênero : - se '(X) mim', então pinga NI mim
Sabe-se que essa preposição /ni/, que na escrita provavelmente seria um "ne", é bem estigmatizada porque falada por pessoas de baixa escolaridade. Mas é importante saber que essa desvalorização é social e não tem nada a ver com certo ou errado como bem pudemos verificar. O amálgamas "na" e "no", bem como a preposição "em" recuperada nesses amálgamas, ainda são as variantes de prestígio.