Na língua descansa este monstro adormecido: a ortografia
Bom texto o de António Fernando "Com licença, gramática..." aqui publicado em 20.09.09.
Ele levanta uma questão interessante: a velha confusão que se faz entre língua e escrita, letra e fonema. Vou pegar um gancho em seu texto para falar de ortografia.
Todos sabemos que ortografia é, nada mais que, uma tecnologia criada para representar a língua. Assim como um geógrafo se serve do Atlas, representação pictórica do planeta, para falar de montes, continentes e mares; também estudiosos de língua se servem de ortografia para falar da linguagem humana. O objeto de estudos de um geógrafo está lá na natureza independentemente de um Atlas. Na linguagem ocorre o mesmo: de um lado temos a língua viva, com a pronunciação, os verdadeiros monotongos, ditongos, tritongos e hiatos; do outro, a convenção ortográfica com suas letras, acentuações, pontuações e dígrafos.
Não é muito difícil encontrar alguém que, escrevendo a palavra "peixe", se refira ao "ei" como um ditongo ! - Entretanto é preciso ter cuidado - "di" significa "dois", "tongo" significa "som" - daí "ditongo" significa dois sons, "tritongo" três sons, "monotongo" um som, os quais só podem ser constatados na língua falada. Na escrita esse "ei" é um dígrafo (di = dois e grafo = letra), duas letras.
Quando alguém escreve "peixe" e diz /pexe/ - podemos dizer que, nesse caso, o dígrafo "ei" monotonga na fala. Mais isso ocorre de forma mais ou menos sistemática com as palavras em que o dígrafo "ei" antecede um "x" , um "r" ou um "j".
Assim todo dígrafo "ei" antecedido de "x", "r" ou "j" é naturalmente na fala o monotongo "e", veja:
Feixe - /fexe/
Deixo - /dexo/
Queixo - /quexo/
peixe - /pexe/
marinheiro - /marinhero/
banheiro - /banhero/
beira - /bera/
carteiro - /cartero/
dinheiro - /dinhero/
beijo - /bejo/
queijadinha - /quejadinha/
Mas quem escreve: peito, jeito, leite, pleito, receita
também fala: /peito/, /jeito/, /leite/, /pleito/, /receita/
e não /peto/, /jeto/, /lete/, /pleto/, /receta/ - ou seja nesse caso o dígrafo "ei" ditonga naturalmente, ou melhor, não monotonga - por que ?
O fato é que esse dígrafo "ei" ditonga gramaticalmente em qualquer palavra em que ele não esteja antecedido de "x", "r" e "j".
Mas pode ditongar, se antecedido de "x", "r" e "j", em duas circunstâncias bem específicas:
1- na leitura em voz alta ou pausada da palavra,
2- quando se quer dar ênfase à palavra.
Bem, percebe-se aí que o ditongo "ei" só existe n-a-t-u-r-a-l-m-e-n-t-e se, e somente se, não for antecedido dos fonemas /x/, /r/ e /j/ . Caso contrário ele até pode existir, porém, como fruto de uma convenção letrada, conforme as circunstâncias descritas acima em "1" e "2". O que existe independentemente da língua viva é o dígrafo, que tem a ver com ortografia.