A língua e a cidade do tomate
Há cidades e há cidades. Piedade é uma entre as poucas que considero uma delícia para descansar. É conhecida como a terra da cebola, terra do tomate. O forte de sua economia é a agricultura. Mas o assunto de que queria tratar aqui é, de longe, geografia ou turismo. É de língua.
Quem quer que tenha, usando uma expressão bem conhecida pelos noveleiros de plantão, "arrastado o sari" por lá deve ter percebido que a gramática da fala de boa parte de seus munícipes não confere com a qual estamos acostumados, sobretudo a estudar na escola. Não é muito difícil ouvir
"você gosta meu ?" - "ele gosta seu ?"- "você gosta dele ?"
Ocorre que o "purismo linguístico" insiste em confundir "língua urbana" com "vernáculos rurais" .
Um purista diria que esse falante erra, pura e simplesmente, porque "meu" é um "pronome possessivo". Porém uma atenção mais apurada a essas construções sintáticas lhe daria pistas de que "erro" é algo muito relativo. Uma dessas pistas diz respeito à regência verbal, outra diz respeito ao fenômeno da cumulação. Temos na língua urbana, de um lado, a regência do verbo "gostar" como transitivo indireto, com preposições ( quem gosta gosta de); do outro, a preposição "de" que rege, entre as pessoas do singular, oblíquos ( de mim, de ti/você*, dele*) - excepcionalmente "ele" e "você" como termos regidos. Outro fato é que "dele" é um termo que sofre comutação:
1- Você gosta dele ?
2- Você é amiga dele?
-"dele" em "1" tem valor gramatical diferente de "dele" em "2". Um é pronome-objeto, outro é pronome adjetivo(possessivo). Eis o fenômeno da comutação.
Nos "vernáculos rurais" os pronomes pessoais se organizam de forma diferente e o verbo "gostar", que rege preposição "de", comporta-se como transitivos direto e indireto:
1-As preposições regem pronomes pessoais do caso reto.( pr'eu, pr'ocê*, prele, d'eu, d'ocê*, dele).
Ex.:
Ele gosta d'eu ?
2- transitividade do verbo "gostar" sem preposição rege, somente entre as pessoas do singular, pronomes adjetivos (meu, seu, dele)- Nesse caso, além do fenômeno de regência verbal, há também o da cumulação do pronome:
Ex.:
Ele gosta meu ?
Fazendo a comparação:
LÍNGUA URBANA
verbo "gostar" : transitivo indireto
preposição "de" :entre pessoas do singular, oblíquos
você gosta de mim
ele gosta de ti/você*
você gosta dele
VERNÁCULOS RURAIS
verbo "gostar" : transitivo indireto
preposição "de" : entre todas as pessoas, caso reto
[v]ocê gosta d'eu
ele gosta d'ocê*
[v]ocê gosta dele
VERNÁCULOS RURAIS
verbo "gostar" : transitivo direto
regência: entre as pessoas do singular, pronomes adjetivos
você gosta meu
ele gosta seu
você gosta dele
O piedadense em questão tem bem definido, como pronome-objeto, os pessoais de 1º, 2º e 3º pessoas do singular. ( meu, seu, dele). Trata-se, nesse caso específico, de pronomes pessoais e não possessivos. Essa gramática em vigência é a dos vernáculos rurais e não a da língua urbana.