LUSOFONIA REVISITADA - GALEGO & PORTUGUÊS

                              “Minha pátria é a língua portuguesa”
                                             Fernando Pessoa, poeta luso


     Língua galega é o nome oficial, na Espanha e na União Européia (UE), do idioma próprio da Comunidade Autônoma da Galiza, integrante do território espanhol. Além da Galiza, fala-se o galego na fronteira com as comunidades autônomas das Astúrias, Zamora e Castela-Leão (Espanha), estimados em 2,7 milhões e nas comunidades de emigrantes galegos (Argentina e Uruguai, p.ex., abrigam para mais de três milhões de galegos da diáspora).
     A Galiza é, talvez, a região histórica mais antiga do Estado espanhol com configuração geográfica bem delimitada, situada a norte (acima) de Portugal, tendo o curso do rio Minho a servir de divisor territorial, e ocupando o noroeste do território de Espanha; compreende as províncias de La Coruña, Pontevedra, Lugo, Orense e a capital Santiago de Compostela, famosa por sua catedral e romarias.
     A língua portuguesa é oficial nos países constituintes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa-CPLP (Brasil; Portugal; Angola; Moçambique; Cabo Verde; São Tomé e Príncipe; Guiné-Bissau e Timor-Leste) e falada como segunda língua em quase todos os países do mundo ocidental (e alguns do oriental: Japão, Índia, China, etc.), estimando-se em derredor de 300 milhões em todo o mundo.
     Na verdade galego e português são uma única língua, românica, nascida na faixa ocidental da Península Ibérica, como logo se verá. Maioria dos linguistas reconhece a unidade dessas variedades de expressão (Joan Coromines, Lindley Cintra, Coseriu, Maria do Carmo Henriques, p.ex.). Muitos apontam o galego como uma variedade dialetal do português com laivos de castelhanização na escrita ou, na expressão dos linguistas, conformam um diassistema.
     Num sumariíssimo bosquejo histórico diremos que, ainda na Pré-História, os autóctones que já habitavam a Península Ibérica desde o paleolítico receberam influências miscigenantes dos iberos e dos celtas, resultando no elemento populacional prevalente, dito celtibero, que ocupava o NO da península. No período antigo da História os fenícios desenvolveram navegações no Mar Mediterrâneo, estabelecendo entrepostos comerciais em vários pontos do sul da Europa, chegando até ao norte da África, fundando Cartago. Seguiram-se os mercadores gregos e logo os romanos que, sob Júlio César e Augusto (séc. I a.C.) conquistaram a região, impondo sua civilização, suas leis, seus costumes e organização e, principalmente, sua língua, o latim, anexando-a ao Império Romano.
     Os romanos dividiram a península em três grandes províncias, seguindo critérios étnicos e logístico-administrativos: a Tarragônia, a Lusitânia e a Bética. A Lusitânia ocupava o NO da península, abrangendo o que são hoje Portugal e Galiza. Disso depreende-se, de imediato, que os lusitanos, que se autoproclamavam descendentes diretos de Luso (daí o gentílico), filho do deus Baco, formavam etnia única que, ao sofrer a influência impositiva do latim vulgar (falado por mercadores e pela soldadesca das legiões romanas, suas famílias e agregados) desenvolveram, com o rodar dos tempos, o falar lusitano, mais tarde rotulado (após a divisão territorial) de galego-português (ou galáico-português).
     Na Idade Média o poderoso Império Romano foi conquistado pelos bárbaros germânicos, que expulsaram suas legiões e se estabeleceram em seus domínios. Na Península Ibérica as principais hordas bárbaras foram representadas por hunos, alanos, suevos, godos e, principalmente, os visigodos (séc. V), que por força dessa dominação exerceram influência nos costumes e na arquitetura (estilo gótico), mas não nas línguas ibéricas, já constituídas e consolidadas a partir do latim vulgar; eram os chamados românicos ou romances (galego-português, castelhano, leonês, catalão, v.g.) que os romanos denominavam rustica romana lingua.
     Em 711 houve a invasão dos árabes muçulmanos do norte da África, que na península ficaram conhecidos como mouros ou sarracenos, estabelecendo uma dominação que iria perdurar por quase oito séculos. Muitos cristãos não se submeteram, retirando-se, transpondo os Pireneus, e dali lançaram-se à luta de Reconquista, que se arrastou por vários séculos, culminando com o retorno à península e a fundação dos reinos de Navarra, Aragão, Leão e Castela, prosseguindo as vitoriosas lutas de expulsão dos mouros. Do Reino de Leão foi destacado o Condado Portucalense, que mais tarde, após várias conquistas sobre as terras mouriscas, veio a constituir-se no Reino de Portugal, em 1139. Depois de encarniçadas lutas contra os sarracenos, conquistando Lisboa, Santarém, o Algarves e muitas outras cidades, Portugal logrou tomar quase a forma que ostenta hoje. A longa dominação árabe, conquanto não tenha anulado as línguas ibéricas, deixou, não há negar, expressivo acervo léxico que a elas se agregou, incluindo o galego-português.
     Declarada a soberania de Portugal houve, além do estabelecimento das fronteiras entre o reino português e o de Castela e Leão, a consequente separação física entre os lusitanos ocupantes da Galiza e os de Portugal.
     Durante o século XIV, as afinidades étnicas e linguísticas existentes entre Galiza e Portugal levaram os galegos a alianças com os portugueses, em diversas questões. O galego-português teve 700 anos de existência oficial e plena, mas as derrotas que os nobres galegos sofreram ao tomar partido pelas facções perdedoras nas guerras pelo poder, em finais do séc. XIV e começos do séc. XV, provocou a absorção da nobreza galega e dominação castelhana, levando à opressão e ao desaparecimento público, oficial, literário e religioso do galego, até finais do séc. XIX. São os chamados “Séculos Escuros”. O português, por seu lado, durante esse período gozou de proteção e desenvolvimento livre, graças ao fato de Portugal ter sido o único território peninsular que ficou fora do domínio linguístico do castelhano.
     Na verdade, o que concorreu para o distanciamento ou separação do galego-português foi o fato inconteste de que, enquanto o galego foi durante muito tempo (séc. XV ao séc. XX) reprimido, rechaçado, ofuscado e até oficialmente proscrito durante o regime franquista, o que causou o “congelamento” da língua, mantendo-a no estado de arcaísmo idiomático, o português ganhou o mundo ao tempo em que Portugal foi potência comercial, marítima, financeira, colonialista, que se estendeu do séc. XV à segunda metade da centúria recém-finda, logrando sua adoção, como língua efetiva, em diversas regiões do Globo em que Portugal dominou ou comerciou, recebendo, em troca, um formidável acervo lexical que o enriqueceu, enobreceu (como é o caso dos termos advindos dos gentios brasileiros e negros africanos escravizados ao tempo dessa abjeta fase, de triste lembrança) e difundiu como língua culta e cultuada, provocando, igualmente, sua permanente atualização e aperfeiçoamento.
     No final de 1978, com a aprovação da nova Constituição Nacional de Espanha, são reconhecidas oficialmente 17 Regiões Autônomas, uma delas a Galiza, consideradas sua nacionalidade histórica, língua própria e cultura diferenciada. A consciência regionalista na Galiza tem feito com que seu povo venha lutando, denodadamente, pela valorização da língua, não só nessa região da Espanha, em que é cooficial, como na UE, onde já é aceita, oralmente, como português, no Parlamento Europeu, até porque, se dissonâncias há, no tocante à escrita, no falar a semelhança é total, são indiferençáveis. Atualmente há uma linha de atuação defendida por parte das coletividades parlantes e ativistas de defesa da língua, chamada reintegracionista, que visa, exatamente, reintegrar o falar galego com o português padrão, resgatando as formas clássicas do galáico-português no galego moderno, escoimando o castelhanismo, empregado pela grande maioria dos professores universitários dessa província autônoma, bem como vários meios de comunicação independentes, escritores, poetas, formadores de opinião, políticos influentes, membros do Clero, etc.
     O deputado europeu Camilo Nogueira, eleito em 1999 pelo Bloco Nacionalista Galego, faz a maioria de suas intervenções no Parlamento Europeu na língua de Camões. Diz que “o galego é português com sotaque” e que, graças a isso, tem a feliz oportunidade de se expressar, naquele foro, em sua “língua-mãe”: “falo português da Galiza”, diz. Alguns poucos autores galegos publicam seus livros nessa língua, em Portugal. Nélida Pinõn, membro destacado de nossa Academia Brasileira de Letras, edita algumas de suas obras diretamente na Galiza (de onde é natural).
      Os traços gerais do galego, já o dissemos, são os mesmos do português, do qual se distingue principalmente na ortografia e na pronúncia (prosódia, ortoepia). Substitui o lh e o nh do português pelo ll e ñ do castelhano; o ditongo ui pelo ditongo oi ( port.= muito; gal. = moito). A fricativa sonora j pela fricativa surda x (port. =Juiz, gente; gal. = xuez, xente). Algumas diferenças na morfo-sintaxe verbal também ressaltam, umas atribuídas à evolução própria, outras à influência do castelhano. As segundas pessoas do plural têm, em galego, as desinências arcaicas: ades, edes, ides, enquanto no português evoluíram para: ais, eis, is. A primeira pessoa do singular do perfeito do indicativo tem, em galego, o acréscimo da consoante nasal n (port.= sou, vendi, parti; gal.= son, vendin, partin, etc). O artigo feminino uma, representa–se, em galego, por unha ou ũa. Abolição do hífen nas posposições pronominais (port.= haver-se; gal. = haverse).
     Em remate, o povo galego, mercê de razões ancestrais étnicas, históricas, vê-se e sente-se impelido para a área de influência lusofônica, rejeitando a imposição espanofônica (castelhana), havendo, nos dias correntes, cada vez maior intercâmbio e comunicações entre os dois povos irmãos, os galegos e os naturais portugueses, máxime nas áreas de atuação literária, educacional e científica.
     Para nós não há mínima ponta de dúvida: galego é português.

Nota: na ilustração acima a Península Ibérica ao tempo da dominação romana.
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Médico e Escitor. SOBRAMES/ABRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 26/04/2009
Reeditado em 12/09/2012
Código do texto: T1560743
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