O NOVO PORTUGUÊS

                             Sérgio Martins PANDOLFO


        “Há mudança no Brasil. Ela não corre mas anda. Não corre, mas ocorre.”
                                        Herbert de Souza, o Betinho.


           Posta a viger oficialmente a partir de 1º de janeiro de 2009 a reforma que unifica a ortografia da língua portuguesa, o que se verifica na mídia, em todos os seus segmentos, é não só uma total desinformação da população em geral como opiniões as mais desencontradas de pessoas “doutas” consultadas, com apreciações muitas vezes disparatadas, hesitantes, conflitantes e até de veemente repúdio às novas regras do Acordo Ortográfico, que, elaboradas por gente de inquestionável renome e competência, diga-se logo (em que se há de ressaltar o filólogo e lexicólogo Antônio Houaiss, principal responsável pelo processo de unificação), são poucas e extremamente objetivas, simples e simplificantes do nosso rico idioma. Haverá um período de adaptação de quatro anos (até 31/12/2012) em que as duas normativas serão aceitas, mas temos absoluta certeza que dentro de seis a doze meses ninguém mais terá dúvidas ou relutâncias. Como já acontecera aquando de outras reformas até mais profundas e complexas. A redizer Fernando Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
           A Língua Portuguesa é a única que contemplava duas normas ortográficas oficiais: a do Brasil e a de Portugal e suas ex-colônias independentizadas a partir de 1975. E isso prejudica acordos comerciais e de amizade entre nações, a elaboração de documentos diplomáticos e turísticos e tem impedido, até aqui, a adoção do português como língua oficial da ONU (por ora é somente língua de serviço), que argumenta: qual a grafia a adotar, a lusa ou a brasileira? E veja-se: nossa viçosa “última flor do Lácio” é uma das primeiras do mundo moderno, eis que é a quinta (5ª) língua mais falada do Mundo (cerca de 300 milhões de almas) e a terceira (3ª) no Ocidente, sendo uma das consideradas línguas universais de cultura, presente nos seis continentes e oficial na União Europeia e no MERCOSUL. Para o Brasil, que aspira a ter assento permanente naquele foro mundial supranacional, isso é quase condição sine qua non.
           O mundo lusófono é constituído, mormente, por sete países de expressão portuguesa exclusiva (Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau); em três outros o português é cooficial: Timor-Leste (junto com o tétum), Macau (de par com o cantonês) e Guiné Equatorial (ao lado do espanhol e do francês). Além desses, o idioma luso é fartamente utilizado em inúmeras nações espalhadas pelo mundo, tais quais: Canadá, EUA, Índia, Japão, Luxemburgo, Andorra, Suíça, Namíbia, Paraguai, África do Sul, Venezuela e outros, valendo referir que o galego, falado na região autônoma da Galiza (Espanha) e cooficial com o castelhano é tido hoje, pela maioria dos linguistas, como uma variedade dialetal do português. Perceba-se, assim, a importância que hoje detém nossa bela maneira de expressar.
            O acordo em nada influirá na oralidade, somente na grafia, e se limitará a tão-somente 0,5% e 1,6% dos vocábulos usados no Brasil e em Portugal, reciprocamente. O ser humano, todavia, é dotado de uma propriedade física chamada inércia, que se opõe a toda e qualquer modificação de seus atos e movimentos, daí a reação de tantos daqui e da fatia lusitana. Desde os primórdios da Era Moderna o português já passou por várias mudanças de seus cânones gráficos, sempre para melhor, é claro, como esta também o é, pois... para a frente é que se anda. Os textos produzidos nos séculos XVI ou XVII são praticamente incompreensíveis ou ilegíveis nos dias correntes. Será que alguém tem saudades ou nostalgia da ortografia etimológica, que antecedeu imediatamente à atual, fonética, e pretenderia voltar a escrever asthma, augmentar, phthisica, orthographia, rhythma, philosophia, physiotherapia, pharmacia, Nictheroy, Philadelpho, em vez de asma, aumentar, tísica (tuberculose), ortografia, rima, filosofia, fisioterapia, farmácia, Niterói e Filadelfo? Duvidamos. Heráclito, filósofo grego da remota Antiguidade, já sentenciava: “Tudo muda. Só o que não muda é a mudança”.
           Um jornalista (?) de uma folha paulista foi execrante: “A reforma irá apenas criar o incômodo de exigir de alguns milhões de usuários que percam algum tempo... (...). Se há algo a ser eliminado, não são acentos e hífens, mas a estultícia de burocratas”. Eis aí a inércia e a intolerância de mãos dadas! Outra figura auscultada, escritor amazônida (não-parauara), mas radicado em S. Paulo, havido como “de vanguarda”, consultado disse “discordar do acordo” por ser incompleto, não corrigir todas as divergências, rematando com esta pérola: “Espero que seja a última (reforma)”. Onde fica a coerência? Se não foi completo... Acabará se tornando um escriptor bilíngüe. Bem mais feliz e lúcida é a afirmação do músico e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil: “O Acordo Ortográfico é benéfico para todos os usuários da Língua Portuguesa e para sua afirmação como língua mundial de cultura. Adotar o Acordo é manter o interesse vivo na língua. É essencial estabelecer uma ortografia comum, já que a língua falada é etérea, fluente e todos nos entendemos”.
           Ocorre que não cabe ser contra ou a favor. A normativa atual tem força de lei e, portanto, cabe cumpri-la. E mais: como Brasil e Portugal já assinaram seu reconhecimento a Língua Portuguesa passa a ter oficialmente, daqui pra frente, um só jeito de escrevera. Que o acordo não foi completo é vero, mas avançamos muito. Não se pôde fazer o melhor? Fez-se o melhor que se pôde. Nos próximos avançaremos ainda mais, até à perfeição. Ademais, a língua é algo vivo, mutante, por isso que precisa de periódicos acertos; não fora assim estaríamos a escrever à moda de Camões. Aliás que esse notável poeta quinhentista, Príncipe Perpétuo dos Poetas da língua portuguesa já nos advertia, em versos de um de seus geniais sonetos, que: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo o mundo é composto de mudança/ Tomando sempre novas qualidades”.
           Muitos se dizem contra só porque eliminou-se o trema. Sai o trema, mas entram mais três símbolos gráficos: as letras k, w e y são reincorporadas ao alfabeto conferindo retidão aos Darwins, Franklins e Yolandas, só para pôr exemplos. Também nutríamos especial simpatia por esse charmoso adereço que coroava o u em determinados vocábulos, mas, que falta fará? Portugal (e seus seguidores) nunca o usou e todos reconhecem a correção do falar luso; ninguém por lá diz “consekência” ou “linghiça”, ó pá! Isso para não falar que alguns “empolados” daqui punham trema onde os não havia e pronunciavam qüestão, qüestionar, adqüirir, em vez de questão, questionar, adquirir; já outros costumam acentuar letras que normalmente não o são, proferindo, alto e bom (?) som, os intoleráveis gratuíto, circuíto, fortuíto, desiguína, adevogado, peneu, rúim, portanto... Acode-nos à lembrança que, quando estudante de medicina, tivemos um professor de bom saber científico e reconhecida cultura geral que só pronunciava “frekência”, “sekência”, “unghento”, “trankilo”; e isso em plena vigência dos dois pontinhos sobrepostos ao u. Ademais, e isto é importante, aprende-se primeiro a falar e somente depois a escrever, consequentemente (assim mesmo, sem trema), a pronúncia correta independe da grafia. Havia acentos demais. Algumas palavras levavam até três ou mesmo quatro acentos. Querem ver? Aí vão exemplos: qüinqüênio, qüinqüefólio, qüinqüenérveo (3), qüinqüelíngüe (4). Eliminaram-se os inúteis.
           É de se ressaltar o fato de que a grande maioria dos que se declaram contrários às novas regras ao serem inquiridos dizem desconhecerem-nas, ou seja, são do tipo: “Não li e não gostei!”. A alegação que muitos fazem que a reforma teria sido forçada pelas companhias editoras de livros didáticos (incluindo dicionários) e enciclopédias absolutamente não procede, eis que essas publicações são reeditadas regularmente a cada um ou dois anos. Os livros impressos anteriormente à reforma também não perdem seu valor naquilo que têm de essência ou conteúdo doutrinário, continuarão a ser manuseados e ninguém os desprezará, obviamente. E mais: daqui a algumas décadas poderão vir a ser raridades. Há tantos assim atualmente!
           Padronizou-se a utilização do hífen; as regras são mais abrangentes, há menos exceções. As dúvidas, que certamente surgirão no início, poderão ser dirimidas com a aquisição de manuais já disponíveis nas bancas de revistas, livrarias e outros locais (a propósito, nosso genuinamente parauara pai-d’égua não perderá seu garboso hífen) e, definitivamente, a partir de fevereiro, com a próxima edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP, preparado pela Academia Brasileira de Letras em estreita colaboração com a Academia das Ciências de Lisboa, silogeus oficialmente encarregados, nos dois países, para a resolução de questionamentos referentes ao vernáculo e que, por isso, tem força de lei. Ah! E para geral tranquilidade (sem trema e sem pejo, faz favor) os computadores logo, logo, serão adaptados e equipados para corrigir eventuais deslizes.
           “Inscreve-se, finalmente, a língua portuguesa no rol daquelas que conseguiram beneficiar-se há mais tempo da unificação de seu sistema de grafar, numa demonstração de consciência da política do idioma e de maturidade na defesa, na difusão e na ilustração da língua da lusofonia”, afirma Cícero Sandroni, presidente da Academia Brasileira de Letras.
           Por fim, a imprensa, em especial os jornais (inclusive as versões na internet), que muitos têm como única leitura e até são usados como elemento de instrução nas escolas, jogam um papel fundamental na assimilação das novas regras e deles se espera a pronta adesão ao Acordo Ortográfico; da mesma forma, as revistas de circulação nacional (e até internacional) como algumas hebdomadárias (semanais) ou mensais já se aprestam para a adoção da nova (ou será novíssima?) forma de grafar os vocábulos de nosso rico e sonoroso idioma em que Camões, poeta-mor da lusa língua, “cantou o peito ilustre lusitano” e “chorou, no exílio amargo, o gênio sem ventura e o amor sem brilho”, para bem de todos e felicidade geral das nações (oito) que compõem a comunidade lusófona.

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(*) Médico e Escritor – SOBRAMES/ABRAMES
serpan@amazon.com.br - sergio.serpan@gmail.co.  -   www.sergiopandolfo.com


Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 13/02/2009
Reeditado em 19/07/2011
Código do texto: T1437409
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