Um pensar ao cair da tarde
Estava aqui em meu cantinho quando interrompeu-me um atrevido e mal intencionado pensamento. Roubaram-me a dor que assolava o coração. Onde ela foi parar? Procurei em meu estômago, ao rim questionei, as costas tateei. Nenhum gatuno avistei. A dor que deveras sentia fingir abandonou-me sem alerta e sem aviso. Noutro canto não a encontrei. Talvez procurar refúgio noutro poeta mais eloquente. Quem sabe um poeta menos cuidadoso da honra tenha-a me furtado. Pensamento vil. Poeta não furta, poeta é furtado. Roubam-lhe o coração ou a alma. Ao poeta não se delega o mal. Ao poeta delega-se o sofrer sem dor, o chorar sem lágrimas, o amar sem beijos, o adorar sem toques. Onde está minha dor que em poemas e serenatas louvei? Por onde andarás, motivo de minhas rimas? Talvez minha musa a vertera em riso. Será? Minha flagelada dor transformada em alegre sorrir? Não. Não poderia aguentar tamanha decepção. Minha companheira de escrivaninha voltará ao meu coração para inspirar-me em palavras os cantos que choram e as letras que sangram.