'Música ao Longe' e 'O Resto é Silêncio' - trechos escolhidos
Eu sou a Clarissa do Erico
(trechos escolhidos de "Música ao Longe" e "O Resto é Silêncio")
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VERÍSSIMO, Érico. Música ao Longe.
20.ed. Porto Alegre: Globo, 1977.
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(do diário de Clarissa)
Hoje há uma festa na casa do Prefeito. Não vou. Papai não se dá com ele. Mesmo que se desse eu não ia. Descobri que não gosto de festas. Eu me divirto mais quando estou sozinha. Quando estou sozinha começo a pensar, a imaginar coisas que não existem. Falo comigo mesma. Faz de conta que eu sou duas. Uma pergunta e a outra responde. Cada Clarissa conta uma história. É muito engraçado. Sei que é uma bobagem e que eu preciso guardar este diário a chave para ninguém mais pegar nele.
Quando estou só no quarto até me sinto feliz. O meu quarto é o lugar melhor do mundo. [...] Aqui tudo é meu, aqui ninguém se mete, aqui não há caras tristes. Na prateleira estão os meus livros, os meus romances. Quando leio, gosto de imaginar que sou a mocinha da história. Ler é muito bom. Se não fosse a leitura eu era muito infeliz. Lendo, parece que fujo de Jacarecanga. Bobagem, não é mesmo? Pode ser. Mas eu sou assim. Já ouvi o padre dizer: "São Paulo disse: Eu sou o que sou." Pois eu também. Para que fingir que a gente é de outro jeito? Não adianta.
[...]
A diretora está cada vez mais implicante e parece que tem raiva de mim. Não faz mal. Não preciso dela. Não preciso de ninguém. Se todos me abandonam, tenho o meu quarto, os meus livros e o meu outro "eu" que conversa comigo.
[...] Um amor que ainda não Se definiu é como música ao longe.
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O RESTO É SILÊNCIO - ERICO VERISSIMO
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A vida é uma ventura que vale a pena ser vivida. Saibamos levá-la com tolerância, coragem, compreensão e eespírito de cooperação, transformando-a em atos de bondade e beleza, e procurando torná-la sempre mais digna e melhor não só para nós mesmos como para os nossos companheiros de aventura. Sigamos os nossos instintos sem contudo esquecer que somos parte do grupo humano e como tal devemos evitar que a satisfação despreocupada de nossas inclinações comprometa o equilíbrio social. O curso dos acontecimentos do universo é misterioso. E tudo, em última análise, se resume numa questão de sistema nervoso.
- Mas como podes falar assim? Tu me conheces tão bem!
- Eu sempre digo o que sinto.
- Bom, mas nem sempre devemos dizer tudo o que sentimos. Não compreendes que os outros também têm sensibilidade?
- Pois é. Sou um sujeito mal-educado.
- Não sejas bobo. Eu não quis dizer isso.
Tônio desejava que todos fossem felizes, pudessem alimentar-se bem, tomar banho todos os dias e morar em casas confortáveis. Fazia o que estava a seu alcance para não prejudicar o equilíbrio social. Era tolerante, esforçava-se por compreender e colaborar. Para isso, entretanto, amiúde tinha de forçar a sua natureza mais íntima. Porque se aborrecia com facilidade das pessoas. Detestava a vida chamadasocial, os jantares de cerimônia e as festas. Nada o fazia mais melancólico que uma festa; nada o deixava mais abatido que a perspectiva duma reunião em que tivesse de sorrir, mostrar-se gentil, bem-educado e "simpático". Havia nele um elemento de timidez que vinha da infância e que nem a experiência e o trato com os homens tinham conseguido apagar de todo. Às vezes estava numa reunião que, numa surpresa, se revelara inesperadamente agradável. Mas todo o tempo ficava pensando na sua casa, no seu gabinete, na sua solidão. E quando se via a sós na torre, quedava-se a ruminar, à sua maneira, os momentos agradáveis da festa, corrigindo-os ou dispondo-os ao sabor da fantasia, - tudo isso com a vantagem de poder bocejar sem causar escândalo ou ficar calado sem provocar desconfianças. Em casa, era famosa a sua capacidade de dormir de olhos abertos, quando algum cacete lhe contava uma história desinteressante. Tônio tinha grande poder de abstração. Conseguia alhear-se de tal modo das coisas que o cercavam, que muitos de seus primeiros romances haviam sido escritos no meio do barulho e da agitação. Assim como se aborrecia dos outros, imaginava sempre que os outros com igual facilidade se aborreciam dele. Por isso era esquivo e falava pouco. Esse traço de sua personalidade era a tortura de Lívia, que, durante as visitas, ficava como que sentada sobre brasas, ante o mutismo fechado do marido.
- Tônio, como te portaste mal! Que é que vão dizer de ti?
- Ora, eu até falei muito...
- Não falaste nada. Estavas com ar de sono. Vão pensar que isso é presunção.
- Mas eu estava com sono mesmo!
- És um caso perdido.
Caminhando pelas calçadas, a encontrar conhecidos a todo momento, Tônio sorria, procurando ser amável. Olá! E acenava de leve. Não sabia fazer grandes gestos. Desconfiava dos homens que o abraçavam exclamando "Meu querido." No entanto, sentia-se capaz de fazer sacrifícios por um amigo e até por um desconhecido. Tinha uma consciência de solidariedade que talvez não fosse instintiva, mas que devia ser - ele achava - um sentimento de obrigação, uma espécie de remorso antecipado. Não sabia, no entanto, usar fórmulas de cortesia e portar-se como esses homens que são tidos e havidos como "criaturas afáveis". Estava claro que nem sempre era assim. Às vezes ficava eufórico, comunicativo, desejoso de ver gente, de falar com as pessoas, de dizer-lhes coisas agradáveis.