Trechos selecionados de "Os Supridores" de José Falero
"Mas Pedro já estava familiarizado com imperfeições, como todo pobre que se preza, ainda que não se considerasse merecedor delas, como todo pobre que se despreza." (p.20)
"[...] ouvindo música em volume dominical [...]" (p.20)
"A Vila Lupicínio Rodrigues era o indesejado quintal dum importante centro cultural de mesmo nome. E ali estavam os dois colados um no outro, vila e centro cultural, só para provar que a distância entre a cultura e as pessoas pobres não era física. Os moradores da vila preferiam ficar em casa sem fazer absolutamente nada a frequentar os eventos do centro cultural, esmo que fossem de graça." (p.22)
"Tentou, então, não demonstrar suas emoções; lutou para conter aquela ebulição em que entrava sua alma; fez força para ficar calado, porque, naquele momento, tinha certeza, simplesmente não seria capaz de dizer nada de bom. Mas a língua - ah, a língua! Nem de longe se controla esse diabólico chicote tão facilmente como se controlam braços e pernas. Aquela sufocante vontade de alfinetar, aquela necessidade de falar alguma coisa que promovesse animosidade... A língua foi mais forte que ele." (p.32)
"Talvez tu tivesse presunto pra botar no pão, no café da manhã, e eu, só aquela mortadela chinelona." (p.34)
"Mas não te engana, não, mano! Não pensa nos pobre só como uma pá de coitado. Pra um pobre virar um burguês filho da puta, não precisa muita coisa. Basta uma boa oportunidade. Os pobre tão na merda, trabalhando e trabalhando para fazer crescer a fortuna dos burguês, mas tu sabe o que eles mais quer? O que eles mais quer é um dia virar burguês também. O que eles mais quer é uma chance de enriquecer às custa do trabalho alheio. O que eles mais quer, Marques, é fazer com os outros tudo aquilo que sempre foi feito com eles..." (p.47)
"[...] impacientou-se Marques, fazendo o outro prontamente guardar os dentes." (p.60)
"Se pá a pergunta é ao contrário: cumé que alguém que trampa de supridor nesta porra deste supermercado acabou ficando inteligentão?" (p.64)
"[...] ao emergir de sonhos analgésicos [...]" (p.71)
"No entanto, incapaz de aturar desaforos, logo na primeira semana o adolescente espancara um cliente com um espeto de maminha malpassada, e assim acabava para sempre sua carreira de garçom." (p.78)
"Encolhida na total ausência de perturbações, preenchida da mais absoluta ignorância, olhos fechados, alma em conserva, eis que uma certa criatura achava-se em pleno gozo do melhor período da vida." (p.138)
"[...] doce e picante, diluía-se em seu espírito a mais energizante das percepções: para ter o que se quisesse, eis que bastava ser cruel o suficiente." (p.161)
"Abriu o menu. Antes não tivesse aberto: não reconheceu um único item do cardápio; na verdade, nem sequer sentia-se capaz de pronunciar os nomes que viu ali. Chamou um garçom e pediu o prato que estivesse com mais saída nos últimos tempos. Antes não tivesse pedido: trouxeram-lhe macarrão com vômito de nenê e tempero verde." (p.221)
"[...] nem uma única palavra foi dita dentro da casa durante quase uma hora inteira. É difícil falar quando a alma faz tanto barulho: só se quer ouvi-la." (p.231)
"Depois, veio tudo aquilo de que a polícia é capaz quando deseja extrair informações daqueles contra quem é permitido todo e qualquer tipo de abuso." (p.300)