Intimidades 385
Vinha tonto de um lugar branco em que a minha boca gritava uma dor que parecia de outro. Muitas vezes saía de mim e navegava por lugares estranhos onde nunca antes estive. Voltava sem vontade de voltar, como se o meu corpo fosse uma casca velha, pouco acolhedora. E, contudo, regressava por me saber dali, daquele monte de carne sofredora, sonolenta, cansada. Tudo andava com ritmos insólitos do quase escuro às luzes todas a gritar para acompanhar as vozes altas, o bater dos carros metálicos, o passo levíssimo de quem se arrastava pela penumbra à procura de paz, de sonho, de fé, de nada. Sem jeito, sem aviso, a medicação, a pressão, o picar do dedo, a injecção e, depois, a ordem, a roupa pequena, a cadeira de rodas, os corredores longos, gente alheada, as dores, os pensos, o sangue, a vontade de sair e perder-me por outros lugares e a fragilidade a dispor-me a tudo, a aceitar tudo, a ser, entre jovens donos do saber, a matéria exangue, o uivo recolhido, a entrega. Façam, vejam, invadam, magoem. Sou, aqui, a ausência de alguém que tem voz e querer mas que, de momento, não está. Deixou a sombra, o medo, a dor, a vontade de me esconder num escuro que me tragasse. E depois a luz doce, o dia ensolarado, a saída, a chegada a casa, o cão, o vizinho, o amigo. Ainda, frágil, me recolho e me assusto. Agradeço. Aos poucos, sinto que chego a outro patamar da vida. Da minha vida.