DURANTE O SOFRIMENTO
Durante o sofrimento sou só sentimentos, meu cérebro é incapaz de elaborar frases: elas aparecem de roldão, à minha revelia, como as enxurradas nas tempestades de verão.
Nesse momento, tenho de me concentrar toda no esforço de sobreviver, de não me deixar levar por essa profusão de pensamentos desconexos que me invadem, alterando o ritmo de meus pensamentos.
Depois, sim, quando tudo passa, quando o sol volta trazendo o arco-íris, renovando a esperança e a promessa de paz, quando o ar fica leve e puro e respirável, e quando os passarinhos voltam a cantar, então posso tentar resgatar o acontecido em frases menos apaixonadas, menos doídas, mais lúcidas e compreensíveis.
Mas nem sempre é possível. Às vezes não dá para recapturar e traduzir em palavras a intensidade de uma dor, a profundeza de uma crítica por demais ferina, o alcance de uma injustiça sofrida, o veneno da palavra desferida, ou mesmo a magnitude da alegria sentida, como às vezes não dá para fotografar, da janela do ônibus em movimento, a paisagem que passou.
Mesmo que passemos por lá outro dia, já não seremos iguais, será outra a paisagem, a luz será diferente, outras as cores. Será outra foto. Assim, também, o que escrevo depois sai distorcido e desfocado, mas sempre com o máximo de fidelidade possível.