Amarelo Gelo - Capítulo 1

1.

Os dias são sempre de sol por aqui. Raramente nos deparamos com dias nublados, frios ou chuvosos. Sempre muito iluminados. Costumamos andar pelas ruas com roupas leves. Se você gostar tanto de mulher quanto eu vai querer vir aqui em minha terra. Não existe nada o que fazer além do que se faz nas grandes cidades. Fugir dos carros alucinados, beber nos finais de semana, comentar sobre o lixo nas ruas, entre tantas outras coisas de centros urbanos como o meu.

Mas aqui sempre é quente. No bairro onde moro tenho sorte, a temperatura é alta, mas o vento é fresco, não dessas frescuras que tanto andam na moda. No alto de meu morro, não desses morros de favela-movie que tanto me enojam por serem explorados, mas um morro com ladeiras próximas à inclinação da misericórdia. Como ia dizendo, no alto de meu morro é onde moro, perto de uma antena de telefone, um mercadinho, com uma padaria dentro e algumas outras tantas casas como a minha, pequena, apertada, cheia de tralha comprada nos hipermercados e lojas de conveniência da vida.

Tanto aqui nessa rua quanto no resto da cidade falta o que fazer. Bares, lixo, carros e motos e tudo o mais que se encontra na periferia. Não apenas drogas, mas tudo o que existe em todo canto. É um lugar de tédio.

Em algumas noites, no tédio que se abate sobre essas ruas, coloco um banco na frente de casa, com o portão entreaberto, uma caixa de isopor cheia de gelo e cerveja em lata, um caixinha tocando rock. Fico apenas observando a rua sem nada melhor pra fazer. Falo com os vizinhos que passam, fico digerindo a vida e olhando o tempo passar. Nada é interessante.

O que faço da vida? Não existe isso em meu dicionário. Faço nada e de nada sobrevivo. Umas virações aqui e ali para comprar comida e bebida, pagar as contas que achar convenientes, além daquelas que não pago porque fiz meus trambiques. Vivo bem assim, com o tempo para mim. Para quê dar ao governo um imposto sobre energia ou água se o recurso não será bem utilizado? Continuo bebendo minha cerveja enquanto divago sobre essas e outras porcarias.

Acordar de manhã é a pior parte do dia. A casa vazia e o silêncio das dez horas da manhã são coisas que me incomodam. Costumo ir para o quintal, ficar olhando a cidade ao longe, crescendo, se avultando no horizonte enquanto o sono vai passando. Coço minha barriga e meu saco. Geralmente um café bem quente, bem forte, me acompanha para ajudar Morfeus a ir pra casa e me deixar em paz.

Nesse ócio vou vivendo, num tédio incômodo, fatigado. Acordando apenas por acordar. A campanhia tá tocando, maldita hora para isso acontecer. Logo no momento do meu café.

- Que é? – minha voz embargada e mal humorada do lado de cá do portão.

- É aqui que mora Dick? – perguntou uma voz feminina.

A voz é bonita, mas a entonação me incomoda. Talvez seja alguém querendo me pegar, acertar contas antigas.

- Quem é? – silêncio do outro lado. Ainda esperei dez minutos sem resposta. Voltei com o café para o quintal, esqueci o ocorrido.

Numa outra noite qualquer, acredito que uns três dias depois, estava novamente com o isopor, as cervejas e o caixinha ligado em qualquer rock. Um conhecido meu das quadradezas, conversava comigo sobre um assunto sem importância, como são todos eles. Mais a frente, num ponto mal iluminado da rua, umas três ou quatro pessoas, não lembro bem, conversavam animadamente sobre a partida de futebol dos seus times preferidos, dois rapazes e uma mulher ou eram três rapazes e uma mulher ou tudo viado, entre homens e travestis. Reconheci a voz da maldita que tinha me incomodado no café da manhã. Olhei bem para seu rosto, mas as sombras não deixavam que meus olhos delineassem nada, nem reconhecessem qualquer traço familiar. Talvez a cerveja já estivesse fazendo efeito ou apenas a maneira como ela se movia evitando a luz.

- Vou entrar cara, tô me sentindo muito bem não. – falei para o maluco que estava comigo. Ele estranhou a súbita mudança de humor, justamente no momento que o assunto estava ficando mais animado, para ele.

Me recolhi e fiquei lembrando do ocorrido. Tenho a certeza que ela me olhava, não foi uma impressão, ela me encarava, me secava com malícia nos olhos. Ainda acredito que a cerveja me afetou de alguma forma.