CONVERSAS COM QUEM GOSTA DE ESCREVER - CARLOS CEIA
Da importância de ler e escrever
LER
1. “ Acredita-se que a leitura é uma aprendizagem desde os primeiros dias de vida. Ler a uma criança por ser, ainda no útero, pode ser benéfico, mesmo que a ciência não consiga provar que espécie de benefício possa ser esse. Sabemos, isso sim, que em qualquer dos casos ler é um alimento do espírito sem o qual ficamos incompletos.
2. Ler às crianças durante os seus primeiros anos de vida, ajuda-as a crescer não só intelectualmente como do ponto de vista da compreensão do mundo. A medida da imaginação de cada um na vida adulta, a meta que cada um de nós consegue atingir no exercício da mais espantosa e complexa das nossas capacidades — o ser capaz de pensar — é determinada pela forma como nos moldaram a nossa imaginação durante os primeiros anos de vida. Somos o que lemos. Quem nunca leu ou quem leu muito pouco, não conhece nem o mundo em que vive nem os mundos que podemos sonhar.
3. Quem lê, vê mais; quem lê, sonha mais; quem lê, decide melhor; quem lê, governa melhor; quem lê, escreve melhor. Poucos são os atos que valorizamos e que praticamos que não possam ser melhorados com mais leitura.
4. Recomendar a leitura de livros é tão importante e tão inútil como recomendar que se beba muita água. É bom leitor quem transformou o ato de ler numa necessidade e num instinto primários.
5. Ler é um remédio santo para a mais complexa das doenças que é a solidão. Ninguém está só, havendo um livro para ler. E se tivermos um livro para escrever, então somos muitos. “
ESCREVER
1. “ Um escritor não tem/não deve ter nada para ensinar sobre os seus livros. Muitos podem pensar que sim, por isso dão muitas entrevistas, onde explicam e interpretam aquilo que escreveram, como se os livros estivessem incompletos ou como se receassem que uma leitura alheia os possa desvirtuar. Um livro publicado não pertence mais ao escritor. E de certeza que a interpretação da obra de arte não passa por quem a criou ou não depende de quem a criou. O que é histórico ou sempiterno já ultrapassou o seu criador.
2. É possível falar das motivações da escrita. Porque escrevemos? Como escrevemos? É tudo o que de interesse público deve um escritor revelar. O resto é um espectáculo que não merece ser aplaudido.
3. “O que é mais difícil não é escrever muito; é dizer tudo, escrevendo pouco” (Júlio Dantas); hoje escreve-se pouco, com o pretexto de que se diz muito. A sociedade da informação na qual somos obrigados a viver não tolera o muito que podemos dizer quando escrevemos mais do que esperam de nós. Continuamos a fazer o elogio do minimalismo literário. Quanto mais aforístico for o nosso pensamento, maiores serão as probabilidades de sermos ouvidos ou lidos. Ninguém se importa hoje com o fato de que aprendemos a escrever pelo esforço, pela repetição, pelo treino desta alta competição que é a de ser escritor.
4. Escrever é um desporto único de alta competição: pratica-se ao longo da vida, exige um treino intensivo diário, e tem a grande vantagem de ser arbitrado pelo público.
5. Quando Harold Bloom publicou How To Read And Why (2000), uma obra escrita para elogiar o poder da leitura literária contra o impoder de certos fenômenos juvenis como Harry Potter, acreditou que era possível trocar precisamente o Harry Potter por Shakespeare, Cervantes, Oscar Wilde ou José Saramago. E disse numa entrevista: ''Para pensar melhor, precisamos da memória do que foi ensinado, lido e escrito. E isso só se encontra nos grandes livros.'' A questão que se coloca é: se não temos muito tempo para ler, o que devemos ler? J. K. Rowling ou William Shakespeare? Consta que na primeira semana em que o livro de Bloom esteve à venda, recebeu mais de 400 cartas protestando contra a crítica aos milhões de leitores de Harry Potter.
6. Bloom não gosta de Harry Potter, porque, diz, é uma colecção de lugares comuns que em nada enriquece os jovens. Recomenda como alternativa o clássico Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll, e o excelente Contos de Shakespeare (1807), de Charles Lamb. Ora, eu aprendi a ler através da literatura oral e popular e devorando todos os livros de banda desenhada que o meu pai colecionava. Aprendi a ler através dos lugares mais comuns da própria literatura. Aprendi que ler tudo é o melhor remédio para saber hoje o que é que vale a pena ler. A pergunta J. K. Rowling ou William Shakespeare? nunca devia ser ser colocada perante ninguém. O importante é o compromisso que cada um de nós estabelece com aquilo que sente que deve ler. Errado é pensar que J. K. Rowling é suficiente. Harry Potter é apenas um cantinho do mundo. As tragédias de Shakespeare estarão certamente do outro lado do mundo, mas a nossa imaginação, se estiver predisposta a isso, pode viajar para todo o lado e não deixar ninguém de fora.”
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In: Carlos Ceia, O professor Sentado: Um Romance Acadêmico. Ed. Duarte Reis, Lisboa, 2004