Onde enfio isto?
Conclui rápida leitura de Vidas Secas, sentei-me ao computador e me ocorreu o abaixo. Se servir para alguém, que faça bom proveito.
Sou muito rebelde no que diz respeito à classificação ou denominação de coisas. Não compreendo nem tenho a menor boa-vontade para com a necessidade fremente de dar nome e sobrenome a tudo e a todos. Primária e pedagogicamente considerando, seja talvez necessário. Fora disto, considero limitação e confesso, portanto: tenho extrema má-vontade em relação a tal rotulação ou nomenclatura.
Em outras palavras, quero dizer o seguinte: terminei a leitura do clássico Vidas Secas, e senti vontade de escrever sobre.Não sei se posso chamar isto de resenha, pois, nunca sei direito o que isto significa. Colocar talvez o verbo no infinitivo? Bobagem de uma metodologia limitado, sem neurônios suficiente para bancar-se. Mas antes quero registrar meu primeiro contado com o romance do grande Graciliano Ramos.
Sertão cearense e uma vidinha bem próxima à de uma dos filhos de Fabiano: analfabeto, desnutrido e atendia por Nun-ã, um grunhido gutural típico dos subdesenvolvidos. A diferença entre mim e um dos meninos do livro: meu pai tinha um pedaço de terra. Em tempo de bonança ele contratava um “fabiano” e agia como o patrão deste, cobrando altos juros cunhados num seco “se quiser é assim, senão, se arribe”.
Chegou-me às mãos o livro onde se achava a historia de uma cachorra chamada Baleia. Difícil acreditar, mas, juraram-me que estava tudo ali naquele amontoado de papel e letras pequenas, uma atrás da outra. A capa avermelhada tinha uns garranchos, uns riscos imitando um cão; outros, um sol; e, uns cambitos eram-me gentes grandes e miúdas, uma família a caminhar pelo mundo.
Disto eu sabia já em tenra idade, pois, à porta de casa passavam retirantes - comiam criancinhas ou roubavam-nas dentro de um saco grande, sempre às costas de homens subjugados, humildes, sorridentes... Mas, tudo para enganar, dar o bote e, então, aprisionar os pequeninos dentro dos embornais pretos de sujeira.
Apeguei-me àquele compêndio feito fosse a coisa mais linda, mais maravilhosa, mais valiosa, mais importante da minha existência inteira! Fosse ouro puro e lapidado, ainda assim eu não o prezaria tanto! Ao livro eu dormia agarrado, dentro da rede listrada, embuçado no lençol de algodão amarelado com cheiro acre de urina velha.
Púbere e analfabeto. Mas num esforço sobre-humano, eu conseguia juntar duas letras, assim: ‘v’ mais ‘i’ é igual a vi; ‘d’ mais ‘a’ é igual a da. Após longo tempo de árdua concentração, eu concluía que a palavra significava vida; o que me enrolava era a letra ‘s’, a tal cobrinha, que estava ali só para atrapalhar. E eu ficava felicíssimo quando percorria os olhos na página inteira, palavra por palavra, linha por linha, e, então, conseguia decifrar palavras como: seco, rala (ninguém sabia me dizer o que significava) novo,menino e Baleia (esta palavra foi minha mãe quem me ensinou). Meu pai é que não conseguia ajudar muito, não tinha jeito com esse negócio de leitura; fosse uma conta de somar ou diminuir...
Dito isto, vamos à resenha do clássico da literatura brasileira.
Graciliano inicia a narração dizendo sobre a travessia dos retirantes à caatinga inóspita. A família é salva da morte por duas vezes. Na primeira, come o papagaio, que quase não fala, pois, apenas repete os grunhidos escutados na convivência. Na outra vez, quem salva o clã da morte iminente é a cachorra Baleia; esta consegue caçar um preá. A família se alimenta da caça, readquire forças e chega, finalmente, a uma tapera abandonada, onde consegue água, trabalho e um patrão ausente.
Então, o autor, muito bom por sinal, traça o dia-a-dia, dedica um capítulo para descrever sonhos e aflições de cada personagem, uma e outra firula até encaixar o conto principal, Baleia, que deu origem a história, ao romance Vidas Secas.
O ponto alto do livro, na minha opinião, é o primoroso capítulo onde é contado o encontro entre Fabiano e seu inimigo, o Soldado Amarelo. Acho que poucos personagens, na literatura brasileira, têm o caráter tão bem descrito como Fabiano, em Vidas Secas. Indubitavelmente, uma joia das letras nacionais.
Uns e outros circunlóquios sobre um presente que prenuncia, no futuro próximo, a repetição do passado tenebroso; e a nova arribada da família rumo à cidade grande. Assim eu diria sobre o enredo.
Aproximadamente 170 mil caracteres com espaços, distribuídos em 13 capítulos. No primeiro capitulo a família aparece inteira, em pinceladas gerais, donde é possível deduzir idade, objetivos e sonhos. Tal situação é praticamente repetida no último capitulo. A principal diferença fica por conta da idade dos personagens; os pais mais velhos e as crianças mais crescidas a puxarem o cortejo sertanejo.
A obra inteira é bem amarrada e denota o grande domínio do autor sobre a língua. Frases curtas e precisas, que bem ilustram o pensamento do autor de ‘que as palavras servem para dizer e não para enfeitar’. Frisei uma séria de frases como: “Sim senhor, arrumara-se; a trouxa de sal não se tinha perdido; ia envelhecendo; homem aprendido; um soldado amarelo não lhe pisava o pé não" e, por fim, "Hem? que iam ganhar?"
De resto, é só prestar atenção no grande mestre das letras Graciliano Ramos. Tudo está na cara, é só olhar e ver e escrever como ele.