O DESPERTA DA AURORA
No recanto esquecido de um velho sítio, onde o orvalho da manhã dançava como pequenas estrelas caídas sobre a grama, vivia uma porquinha de pelos rosados e olhos curiosos como dois botões negros. Seu mundo era um pequeno chiqueiro cercado por tábuas envelhecidas pelo tempo, mas que guardavam, entre suas frestas, segredos do mundo além.
A porquinha, chamada Aurora, acordava todos os dias com o mesmo ritual: o ranger familiar da porta da casa de madeira e os passos leves de uma anciã. A velhinha, com mãos enrugadas pelo tempo e olhos castanhos âmbar, trazia sempre um balde cheio de lavagem fresca e restos da sua própria mesa. Enquanto Aurora comia, a velhinha acariciava suas costas com ternura e murmurava palavras doces, chamando-a de minha pequena, minha querida, minha bolinha rosa.
O chiqueiro tinha uma porteira velha cujo trinco estava sempre solto. Aurora sabia disso. Com um simples empurrão do focinho, poderia abri-la e explorar o mundo além. Mas o chamado da liberdade sempre era abafado pelo aroma da comida farta e pelo carinho das mãos enrugadas da velhinha.
Por entre as frestas da cerca, Aurora contemplava o mundo. Certa manhã, seus olhos acompanharam o voo majestoso de um gavião. Com asas estendidas, ele cortava o céu como uma flecha, livre e soberano.
"Ah, se eu tivesse asas como o gavião," suspirou Aurora, "poderia voar para além das nuvens, longe deste chiqueiro. Dessa lama suja... Que lindo seria!"
Em outra ocasião, viu um cavalo galopando pelo campo, sua crina dançando ao vento como fios de ouro sob o sol.
"Se eu tivesse patas forte, longas e elegantes como ele," lamentou-se, "poderia correr por campos infinitos, sentir a terra sob meus cascos e o vento em meu rosto. Talvez iria até o mar que nunca pude contemplar".
Dia após dia, a situação se repetia: era a astúcia da raposa, a graça e os chifres do cervo, a força do touro, a agilidade de gato... Cada criatura parecia possuir um dom especial que lhe garantia a tal liberdade de ser, e o que Aurora tinha? Era só uma porca, o que poderia fazer além de fuçar na lama?
Uma tarde, enquanto cochilava sob a sombra escassa do chiqueiro, foi despertada por um grunhido selvagem. Ali, do outro lado da cerca, um javali de aspecto feroz a observava. Seus olhos eram de um negro intenso, e suas presas curvadas brilhavam sob o sol poente.
Curiosa e um pouco amedrontada, Aurora aproximou-se da cerca.
"Como consegue ser tão livre?" perguntou ao estranho visitante. "Nós não somos tão diferentes, mas você vive solto."
O javali fitou-a em silêncio, então respondeu com voz grave: “GRONC-GRONC-GRONC” e então, com um “BRUFFFF” o javali desapareceu entre as sombras do bosque enquanto a luz do sol daquele dia se apagava, deixando Aurora imersa em pensamentos.
Dias se passaram. Aurora continuava sua rotina, mas o encontro com javali ecoava em sua mente como um mantra antigo — GRONC-GRONC-GRONC. Ela começou a ver seu chiqueiro não como um lar, mas como uma prisão com portas destrancadas. A comida farta já não satisfazia sua fome de experiências, e o carinho da velhinha, embora doce, não preenchia o vazio que crescia em seu peito.
Certa manhã, o familiar ranger da porta da casa não veio. Nem o balde de comida, nem as palavras doces da velhinha. Ao invés disso, passos pesados e vozes graves se aproximaram. Dois homens de mãos calejadas e olhares duros entraram no quintal. Um deles trazia uma peixeira que reluzia sob o sol como uma promessa sinistra.
"A velha finalmente decidiu," disse um deles, afiando a lâmina numa pedra. "Já estava mais que na hora."
Aurora, com um súbito movimento, empurrou a porteira com o focinho. O trinco solto cedeu facilmente, como sempre teria cedido se ela tivesse tentado. Com um grunhido determinado, Aurora correu como nunca havia corrido, suas patas curtas encontrando força em cada passo. Ela não era um cavalo, mas suas pernas a levavam. Não era um gavião, mas era como se voasse.
Os homens gritaram e tentaram persegui-la, mas Aurora já havia desaparecido no bosque, seguindo inconscientemente os rastros invisíveis do javali, seu coração pulsando como um tambor de guerra.
E na escuridão acolhedora da floresta, enquanto aprendia a sobreviver como seus ancestrais, Aurora compreendeu que sua prisão nunca foram as cercas do chiqueiro, ou a ausência de algo que observava nos outros animais. Não eram asas, nem patas velozes, nem astúcia que lhe faltavam. Era a coragem de usar o que já possuía.
A verdadeira liberdade, afinal, não estava nas asas que nunca teria, mas na coragem de usar as patas que sempre teve.
GRONC-GRONC-GRONC.