CONVERSA SOBRE GATOS

- Quando eu era criança, acreditava que meninos e meninas da nossa idade deveriam fazer coisas de gato, ter gestos de gato, atitudes de gato, fala de gato. Por exemplo, lamber os braços; dar um jeito de lamber o rabo. E eles deveriam aprender coisas nossas, por exemplo, conversar em vez de dormir na maior parte do tempo. Já pensou o gato da casa perguntar quem descobriu o Brasil; qual a temperatura do dia; o que temos para o jantar.

- É louco pensar essa doidice! Estás viajando. Excesso de criatividade!

As ideias só poderiam ser mesmo da Shirley que conhecemos... – disse uma das integrantes do grupo.

Shirley pensava coisas assim, um tanto estapafúrdias, surpreendentes. Rodopiava e descrevia suas ideias, até cansar. Ela não sossegava e sempre aparecia com esquisitices, mesmo já adulta. E por isso, era chamada de Pião Zarolho.

Zizinha para os íntimos da família, Zilda Maria era conhecida como Porta do Meio, desde que perdera os primeiros dentes de leite. Ela sempre tinha uma ponderação que trazia Pião Zarolho para a realidade.

Copo de leite, ou JJ eram os apelidos da mais branquinha, de cabelo louro, batizada Joana de Jesus. Ela preferia ser chamada de Joaninha, por ser toda miudinha. Dizem que pesava 450 gramas quando nasceu; coube na palma da mão direita do pai dela.

Por coincidência, as três tinham nove anos de idade. Faziam parte de uma turma de cinco ou seis meninos e meninas, autodenominada Clube da Cabana. Parecia agremiação de adultos, tais as conversas que entabulavam. Eram pré-adolescentes – como dizem os adultos. A sede do clube era uma cabana de juçara de açaizeiros, no fundo do quintal, onde se metiam a falar como gente grande, embora os assuntos não passassem das imaginações férteis e improváveis do mundo restrito ao próprio quintal; limitavam-se também à escola ou ao catecismo na igreja, aos fatos domésticos, moradores, avós, visitas e compadres. Além dos gatos.

Estavam reunidos naquela tarde, além de Porta do Meio, Copo de Leite e Pião Zarolho, o Jurubebinha – João Carlos, de oito anos, cuja cara era bem redonda, e que foi comparada à fruta esférica da planta jurubeba; o Tricolor – Eduardinho, já caminhando para os onze anos, era o mais velho e o mais calado; nascera branco, porém com três manchas de tons escuros entre o marrom claro e o chocolate, era uma neurofibromatose, anomalia dos tecidos nervosos. Por isso, Tricolor era também chamado de Café com leite. Por incrível que pareça, ele não se perturbava com as manchas espalhadas entre o pescoço e a bochecha esquerda, e não se aborrecia com o apelido.

O Juliano Peçanha era o menor do grupo, tinha sete anos; ganhou o apelido de Camarão por ser muito vermelho; tinha olhos negros miudinhos; parecia que todo seu sangue convergia para a face, ameaçando jorrar pelos poros quando ele jogava bola sob o sol quente. Não encontraram melhor apelido: Camarão do Guarimã .

- Sabe Porta do Meio, nunca vi um gato beijando outro, como fazemos quando nos beijamos até descobrirmos outras utilidades do beijo. Já ouvi dizerem que é diferente. Além disso, gato deveria ir para a escola. Será que eles frequentam uma escola secreta? Como é que aprendem a correr atrás da bola, miar quando estão com fome ou sentem cheiro de peixe na cozinha; e ainda correr atrás de rato e de barata? – disse Copo de Leite, com entendimento claro do que estava dizendo.

- Toda criança deveria ter outras manias, além de correr atrás da bola ou dormir no sofá como um gato; e surpreender as pessoas, estirada no capacho da porta da sala; aboletar-se sobre a máquina de lavar roupas seria chocante, ou ainda dentro do guarda-roupas, como fazem os gatos, só para provocar bafafá na casa.

- Por natureza de criança ou de gato, dorme-se no colo do dono por prudência e conveniência - disse Porta do Meio como se fosse um adulto.

- Os bichanos, quando são queridos de toda a família, para sobreviver não precisam correr atrás de rato, tendo alimento farto. Concordam?

- É, ao contrário, nem todas as crianças têm essa sorte; umas passam fome e não têm casa para morar; pai para delas cuidar; escola e médico; um parquinho para brincar – acrescentou Jurubebinha em discurso quase político.

- É verdade que uns gatos bem comportados, e com tudo que têm direito, não precisam ficar procurando comida. Mas, por inevitável instinto da espécie, os bichanos não se fazem de rogados quando uma ratazana ou uma catitinha aparece na casa. Partem pra cima! E prestam um enorme favor para todos nós. Tenho pavor de ratos e de baratas! – disse Jurubebinha, expressando-se como se fosse um especialista, depois de observar atentamente a conversa.

Camarão deu sua contribuição explorando outra questão: - Se quando criança não anunciamos vontades com fala lenta, tipo assim: miiii-auuuu, miiii-auuuu...!, e baixinho, chora-se de agonia. É a mesma coisa. Quando sozinha no leito a criança dá por falta da mãe, do peito de leite ou do simples afago, da canção de ninar, é um choro berrado, estridente para chamar atenção. Diferente dos gatos.

Tricolor estava calado, desenhando um gato no chão com um graveto, porém atento, acompanhando os diálogos, entrou na conversa:

- Não aprendi travessuras de gato. Por exemplo, subir e descer rápido das árvores; pular os muros; escalar telhados sem maior esforço; ficar vagando pelo quintal; puxar a beira da calça das pessoas ou o cadarço dos sapatos; brincar com bolinhas de qualquer coisa penduradas e encantar criança.

- Se eu subi na goiabeira?

- É verdade, eu subi, certa vez, para descer puseram-me uma escada no tronco da árvore. De cima do muro, um gato olhava-me naquela situação. Acho que estava debochando, e que riu muito durante um ano. Com seu instinto felino, talvez tenha pensado pegar um galho fino de goiabeira e aplicar-me uma surra pela incompetência de não saber descer da árvore. Não fez isso, mas pensei que ele pensou, mesmo, de verdade, nessa coisa desumana de surrar criança só por ter subido na goiabeira.

- Depois, arrependido, veio o gato ao pé da escada, miando, para me ajudar a descer e não cair da árvore – acrescentou Tricolor.

- Agora, não há mais jeito, se coisa de gato não se aprende nesse momento da vida, o tempo passa, tudo se acaba e não se aprende, porque, depois, vão dizer que é doidice querer fazer coisas de gato – disse Pião Zarolho, quase filosofando. - Agora já era...! – acrescentou à observação lógica.

Porta do Meio sacudiu a cabeça aprovando: - É, o tempo passa! De velhice seca a goiabeira, que morre honestamente.

- E os gatos vão embora ou morrem também de velhice. Todos os gatos aqui de casa, em certo momento da vida, escaparam; nunca entendi o porquê, se tinham do bom e do melhor, às vezes mais regalias do que eu – contou Pião Zarolho.

- Foram embora e não ouviram a ladainha de São João, perderam as cabeças de camarão do caruru e do vatapá; nem viram a banda passar tocando na véspera do Círio. Um se foi pelo portão aberto (que não era obstáculo aos gatos) e se escafedeu. O mais quieto, sem deixar recado, foi à igreja espiar a missa, embora gato não reze nem Ave Maria. Nunca mais voltou. O outro, sempre esfomeado, foi procurar peixe no mercado e por lá ficou – acrescentou Pião Zarolho.

- E eu ainda estou aqui pensando na minha infância, que está passando sem ter um gato para me ensinar a descer da permanente goiabeira – disse Copo de Leite.

Já a tarde caía. Encerrada a reunião, Pião Zarolho, que hospedou toda a turma naquela tarde, foi até ao portão despedir os amigos. Quando voltou, viu que no sofá da sala o gato da casa, chamado Espécie, dormia quieto. Ela pensou: Ele tem uns quinze anos de idade e deve estar cansado, anda mancando, deve ser artrose, tão sedentário e gordo está, pois gato tem artrose e obesidade. E um dia morrem.

E assim, ela arranjou assunto para a próxima assembleia do Clube da Cabana.