O vazio do amor dito
Um jovem aprendiz budista subiu a montanha com seu Mestre,
Lá em cima, em volta de uma fogueira, descansando, o jovem iniciou uma conversa com o que lhe inquietava a alma:
- Mestre, posso lhe fazer uma pergunta sobre algo para o qual nunca encontrei resposta na minha vida?
- Claro, jovem padwan. Pode fazer a pergunta que quiser, só não sei se minha resposta será a resposta que melhor o conforte.
- Então, quando eu estava no mundo das coisas profanas, me apaixonei intensamente por uma jovem da minha aldeia. Nós crescemos juntos, éramos amigos, e ela sempre me contava das tristezas românticas dela com outros rapazes e de como gostaria de ser tratada, de como via o amor e de como esperava algum dia receber o amor. E eu me encantei por ela e comecei a tratá-la do jeito que ela dizia almejar, mas ela somente me usou, usou meus bons tratos, usou meus cuidados e desprezou meu amor profundamente. Eu nunca entendi porque isso aconteceu já que eu lhe dei justamente o que ela desejava mais ardorosamente, a tratei como uma princesa...
- Jovem padwan, o problema esteve sempre no recipiente.
- Recipiente? Como assim? Não entendi, Mestre! Me explique, por gentileza!
- Se você está no deserto, por horas, dias, desidratado, o que será mais importante você ter ou encontrar?
- Água, claro que será água, senão eu morreria em pouco tempo!
- Então o que tem valor é o líquido?
- Sim, claro que é!
- E se esse líquido estivesse dentro de um balde ou em uma velha banheira? A água ali depositada, ainda seria o mais importante?
- Claro, Mestre! Estivesse onde estivesse, se fosse água e me salvasse de morrer seco no deserto, pouco importa o recipiente!
- Hummm, entendo. Mas e se você estivesse fazendo turismo em uma cidade grande, tivesse andado o dia todo debaixo de um sol intenso, entrasse em um restaurante, pedisse água e lhe trouxessem em um Balde. Você a beberia sem reclamar, do mesmo modo que teria feito no deserto?
- Ahhhh, acho que não, porque eu beberia em um balde, em um restaurante com tantos copos disponíveis? Eu acharia que estavam troçando de mim!
- Mas o que de fato é importante, é o líquido, a água ou não é mais? O recipiente se tornou mais importante que a água?
- Dependendo da situação sim...
- Mas se você não bebesse, teria desidratação e poderia morrer do mesmo jeito, não é?
- Sim, mas eu iria procurar por um copo...
- Então o recipiente seria mais importante que o líquido almejado.
O jovem parou para pensar durante um tempo e depois voltou ao diálogo.
- Mestre, o senhor está dizendo que a jovem por quem eu me apaixonei não queria de verdade o amor ao qual tanto referenciava e descrevia com riqueza de detalhes por minha causa? O mesmo amor que eu a ofertei, ela não o queria vindo da minha pessoa? Eu não era o recipiente adequado para ela? Ela queria outro recipiente e irá passar a vida procurando primeiro o recipiente e depois algum sentimento que caiba naquele?
- Sim, exatamente.
- Eu sou um recipiente ruim? Ela sempre me disse que não era alguém de aparência, que não julgava as pessoas, que se interessava pelo interior, pelo tratamento, pelos sentimentos...
- Meu jovem, as pessoas dizem o que querem, para serem vistas como querem. São representações de suas ideias, de suas utopias e não de quem são de verdade.
- Ela estava mentindo?
- Não, pois até mesmo ela se via dessa forma. Quando você ofertou tudo o que ela queria que outra pessoa lhe ofertasse, você a fez ver, afinal, que não era o líquido que importava de verdade, mas o recipiente. O recipiente que outras pessoas veriam e julgariam. Você a fez ver de fato quem ela era.
- Então, é isso? As pessoas idealizam o amor em outras pessoas e não dão valor ao sentimento propriamente dito?
- Sim, jovem padwan. As pessoas querem o que não condiz, usualmente, com suas expectativas reais, embora só externalizem as esperanças ideais.
O jovem ficou pensativo novamente.
- E quantos estão por aí com copos vazios, morrendo de sede...
- Sim, exatamente. Mas estão com os copos na mão, expondo-os ao mundo, pois, para essa pessoas o líquido não é mais importante que o recipiente.
O jovem absorveu aquele ensinamento e uma lágrima rolou por seu rosto.
- O que fazer diante disso?
- Deixar ir. Apenas isso, deixar ir. E não acreditar mais no "amor dito", pois ele quase nunca corresponde à realidade.
E assim a conversa terminou sob a luz do luar e das estrelas no céu, enquanto a fogueira creptava no silêncio.