Zunildo e o mistérios do livro sagrado

   

Havia um mundo desconectado, e havia um menino de nome Zunildo, que nascera num estreito vale desconectado do mundo desconectado.

 

Zunildo era filho de dona Clarinda, cozinheira de fazer a gente lamber o prato, e de seu Ambrósio, competente contador de histórias, que sempre arranjava um jeito de pôr lobisomens em cena, não importando se o caso fosse de pescaria ou de marido chifrado.

 

No vale desconectado do mundo desconectado também havia dona Lídia. Com ela Zunildo aprendeu a ler e a escrever, aprendeu a lidar com os números, aprendeu que o vale desconectado era apenas um dos milhares de vales desconectados que existiam dentro do mundo desconectado.

 

Dona Lídia era solteirona, não tinha remorsos por usar a palmatória, e quando ficava brava, soltava impropérios em italiano. Era velha, corcunda e nariguda, e uma verruga cabeluda lhe ornamentava a ponta do queixo. Um anjo, garantem todos que a conheceram.

 

Foi dona Lídia quem deu uma edição do Velho Testamento a Zunildo.

 

Nas escrituras do povo hebreu Zunildo travou conhecimento com um mundo longínquo, habitado por homens barbudos que falavam por enigmas. Um mundo onde as mulheres evocavam os mortos, que falavam com serpentes, que engravidavam por mandatos divinos, que se transformavam em estátuas de sal, e que se banhavam ao luar, levando os reis a pecar contra Deus.

 

Nas escrituras do povo hebreu Zunildo lutou contra gigantes, navegou nas águas do dilúvio, viu as muralhas de Jericó caindo ao som das trombetas, fugiu de Sodoma e Gomorra, testemunhou um pastor de ovelhas tornar-se rei em Jerusalém.

 

“Quem sabe eu também possa me tornar algo além do que nasci para ser”.

 

Nas escrituras do povo hebreu Zunildo também ouvia palavras incompreensíveis, que dona Lídia sempre traduzia para a língua do vale desconectado do mundo desconectado; mas certo dia, Zunildo apareceu com uma palavra que dona Lídia não quis revelar o significado.

 

“Peça ao seu pai, que este é um assunto de homens”.

 

“Pai, o que é um prepúcio?”

 

Seu Ambrósio, além de competente contador de histórias, tinha outros variados e úteis saberes. Sabia castrar porcos e bois sem causar desnecessários tormentos aos respectivos machos. Sabia em qual lua plantar o aipim e o feijão. Sabia domar potros e sabia tirar baldas dos tordilhos redomões. Sabia escolher cachorros bons de caça e sabia onde pescar jundiás no ribeirão. Sabia martelar o ferro quente e sabia jogar truco como ninguém. O significado de prepúcio ele não sabia.

 

“Onde diabos você ouviu falar desse trem, meu filho?”

 

Zunildo leu as palavras que Javé havia dito a Abrão:

 

E eis a minha Aliança contigo e com toda a tua descendência futura, Aliança que deverá ser guardada de geração em geração: Todos os do sexo masculino entre vós deverão ser circuncidados na carne. Fareis circuncidar a carne de vosso prepúcio, e essa será a marca da Aliança entre mim e vós”.

 

Por mais que pensasse, seu Ambrósio não conseguia atinar qual fosse o significado da dita palavra, e como se tratava das Escrituras Sagradas, acudiu-lhe a possibilidade de pedir auxílio a padre Virgílio.

 

“Encilha os cavalos, que vamos resolver essa pendenga”.

 

Descendo pela estrada que serpenteava junto ao ribeirão, pai e filho partiram. O vale desconectado do mundo desconectado foi ficando para trás. Zunildo viu a colônia alemã, onde as pessoas falavam como se tivessem pedrinhas na boca. Viu o ribeirão desaguar no rio grande e ficou a imaginar onde desaguaria o rio grande. Viu serrarias e atafonas, viu chaminés cuspindo fumaça e fuligem, viu escolas e lojas com bonecos trajando roupas estranhas. Viu um menino gritando "Extra! Extra!", e viu duas moças com saias tão curtas, que deixavam as coxas à mostra. Viu, no alto da colina, a igreja de Santo Antônio com suas torres espetando o céu, e viu a casa paroquial onde morava padre Virgílio.

 

“O que lhe fez sair do esconderijo, compadre Ambrósio?

 

“Uma palavra dita por Deus”.

 

“Que história é essa?”

 

“Seu afilhado pode lhe explicar com mais clareza.”

 

“A sua benção, padrinho”.

 

“Deus lhe abençoe, meu filho”

 

“O senhor pode me explicar o que é um prepúcio?”

 

O padre soltou uma gargalhada, e pediu que o menino lhe dissesse onde ouvira tal palavra, Zunildo repetiu a leitura dos versículos que tinha feito ao pai.

 

“Bem, prepúcio é algo que nós três temos.”

 

E revelou ao pai e ao filho o significado da misteriosa palavra.

 

Zunildo e seu Ambrósio se retorceram, quando o padre explicou o processo da circuncisão, se retorceram como se estivessem sentido o corte na própria carne.

 

“Até nosso Senhor Jesus Cristo foi circuncidado, mas não se preocupem, Deus não exige mais que seus filhos passem por esse sofrimento.”

 

E quando o padre contou que o rei Saul exigiu cem prepúcios filisteus como dote de sua filha, seu Ambrósio concluiu que o tal do Davi era mesmo um sujeito bom de briga, pois entregou ao rei o dobro da quantidade de prepúcios exigida.

 

No final da tarde, quando o céu acima das serras estava rajado de vermelho, Zunildo e o pai voltaram para o vale desconectado do mundo desconectado. Zunildo levou consigo um dicionário, que padre Virgílio lhe dera de presente.

 

“Dizem que é o pai dos burros, mas na verdade é o guia dos sábios.”

 

E como era noite de lua cheia, seu Ambrósio contou a história de Anacleto Fagundes, o sétimo filho homem de Aristides Fagundes, que por ter nascido o sétimo de sete machos, sem nenhuma fêmea no meio, tornou-se lobisomem, morto com uma bala de prata, numa caçada que envolvera todo o vale desconectado do mundo desconectado.

 

E, quando chegaram em casa, seu Ambrósio quis ouvir mais palavras do livro santo, que de preferência fossem do rei Davi, cabra macho, matador de filisteus.

 

Zunildo abriu o livro sagrado, e à luz do lampião, começou a ler os versos escritos pelo rei-poeta-guerreiro:

 

“Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que formaste, que é o homem, para te lembrares dele? E o filho do homem, para o visitares?…”