PATRÃO PADRÃO
PATRÃO PADRÃO
Supremo, olhar indagativo e tedioso, passou as patas para tirar a remela do canto dos olhos. Conseguiu!
Outra vez espreguiçou-se no tapete da sala a contemplar Paulus Paulipetrus, seu melhor amigo. Amigo do peito.
Paulus estava na boa vida do lar doce larbirinto, recostado na poltrona sobre um legítimo tapete árabe, garantidamente voador, comendo amendoim, ingerindo uma dose de Arak (cachaça árabe), entre uma e outra cerveja.
A barriga não preocupava, de quando em vez um spa nos Alpes suíços, ou nas ilhas Jersey, e o peso logo voltava ao normal.
O cão bocejou para o dono, como se estivesse pensando: "Oh doce tédio. Soubesse que esse cara fosse tão corruptamente maçante, teria escolhido outro humano para fazer companhia". Supremo, o cão, não atinava no que via na tv.
Não compreendia por que Paulipetrus estava ao mesmo tempo em dois lugares. Na sala e ao mesmo tempo na telinha. "Alegria, alegria! Estamos no país do carnaval. Não vou encucar com isso", pensou o cachorrão.
Supremo sentia-se saturado em olhar aqueles conflitos entre personagens do horário nobre, entre uma e outra propaganda do Zeca Pagodinho. Olhou de soslaio para a poltrona onde uma flatulência estrepitosa de Paulipetrus acabou de se fazer ouvir.
As bobagens saíam da telinha animada frente à poltrona da sala. O perro encucou: "Como poderia estar sendo acusado por tantos crimes e ao mesmo tempo não estar preso"?
Pensou: "Essa programação é muito baixaria, até para um cão. Será que todos os humanos são iguais e gostam das mesmas patuscadas, ou será que ele, cachorro com pedigree, prosseguirá fazendo gênero amistoso com Paulipetrus pelo resto da vida? Afinal, matutou o cão, não sou mais um cachorro de canil".
Supremo pensava ter feito escolher-se sim, admitia agora, avaliou mal a má companhia. "Afinal, pensou, quando se está num canil, não há muito a fazer. Basta um gesto de simpatia e qualquer cão começa a abanar o rabo para o possível dono".
Se esse tédio persistir vai ter de vagar sem rumo pelas ruas, parques e praças da cidade, beber, comer e fazer amor no aconchego improvisado das cachorrinhas sem dono, à solta. Graças à magnanimidade do Grande Arquiteto do Universo Canino, elas, cachorras soltas no mundo cão, desfilam aos montes nos cantões dos parques, bares e restaurantes dos Jardins e outros bairros afins.
"Hosana nas alturas, cantões onde há cadelas, são como estrelas: miríades". Supremo não se censurava, mas se achava um cão um tanto quanto sem vergonha:
"A predileção vai para as cadeirinhas das cadelinhas balzaquianas, afinal, é apenas um cão, animal carnívoro da ordem dos mamíferos, uma anatomia relativamente semelhante ao mamífero humano. Sim, pudesse contar com dedos para escrever, essa intermediação telepática não seria necessária".
Para compensar essa sensação de dependência, imaginava-se com frequência em situações de liberdade, porém, no fundo no fundo, sabia, não passar de um cão conservador, gostava de viver à revelia das ideias e tradições de sua raça. Esfregando as fuças, Supremo bocejou e fungou uma, duas, três, várias vezes, sobre a almofada.
Sim, um cão light é apenas um cão light e deve agir como tal. Aprendeu com seu dono a alergia à poeira, e como bom neurótico, a hora da análise é sagrada. Pensando bem, talvez estivesse demasiadamente conformado.
Essas pequenas mordomias estão a comprar a adesão dele a uma classe de humanos que explora seus semelhantes menos favorecidos. Rouba-lhes as verbas para a educação, saúde, habitação, criação de empregos e transporte. Tudo com o aval dos tribunais, e seus juízes togados.
"Ora", empertigou-se, "para subir na vida a gente canina tem de ter e saber manter as aparências. Esses donos são muito carentes. Como não dão carinhos uns aos outros, necessitam buscá-lo nos animais ditos de estimação. Tenho de viver a farsa do agrado".
—"Bom", matutou Supremo, "não vou entrar numa de conflito existencial, tá fora de moda, sem essa aranha. Na verdade, sou um cão safado, ruminou de si para consigo, devo manter meu amor próprio alto, mesmo que para isto tenha de me aliar com os mais corruptos representantes da elite financeira desse país".
"Estou fazendo igual a qualquer humano que, na primeira oportunidade, vende seu corpo, ideias, e liberdade, em troca do que chamam de salário, ração humana em papel moeda com que pagam casa, comida e roupa lavada". E continuou a matutar:
— "Que cão oportunista me tornou a necessidade de uma guarita. É preciso saber viver" como diz a canção. "Graças a Deus não tenho consciência nem estudei filosofia. Um pouco de ética canina bastaria para me fazer ganir numa camisa de força racial o resto de minha vida. Longe desses humanos artificiais".
Supremo, ciente de seus deveres para com as normas chiques da sociedade a que pertence agora, olhou com enfado e certo desprezo para a telinha animada da Tv, cruzou os bracinhos sob o queixo, e como um rato furtivo, deliberadamente mordeu um naco de ração para cães, com queijo. Abriu os maxilares num grande e tedioso bocejo, piscou várias vezes as membranas móveis de cada globo ocular. Ouviu por momentos a agitação, as palpitações de seu coração canino.
Ficou nervoso e neurótico ao ver na Tv visão seu dono sendo preso pela polícia Federal. Peidou estrepitosamente uma, duas, três vezes, ameaçou uivar agressivamente para a lua (a janela de vidro do mezanino aberta para a lua cheia).
Paulipetrus voltou-se de lado na poltrona e repreendeu-o: "Fica calmo Supremo. Tenho gasto muito com você. Quero-o um cão obediente. Você não deve perder a pose".
Desistiu com enfado de prosseguir com a encenação, chateado por ter ejaculado na cadelinha de pelúcia que lhe servia de almofada, sem que ela tivesse sequer esboçado um mínimo gemido de aprovação (fato que serviu para alimentar sobremaneira sua crise depressiva, oriunda de seu dono).
Não é propriamente um mar de rosas essa vidinha supostamente tranquila de cachorro chique. “A proximidade com Paulipetrus não é fácil”, considerou.
— "Desculpe o mal jeito, Supremo, agora vou também eu me recolher".
Supremo fechou totalmente os olhos, abriu a bocarra num outro bocejo, e sonhou com as cadelinhas de verdade, que não tinham tanta vaidade freudiana, como essa insensível companheira de mordomias.