Sob os escombros
Certa feita, em um corpo nomeado, as virtudes decidiram por colocar um basta na vida dos vícios, estes que segundo elas eram a causa da decadência, miséria e morte dos homens.
Durante o descanso e sono de seu senhor, foram todas aos salões neurais do subconsciente debater em segredo sobre a expulsão de toda aquela sujeira contaminante.
A primeira a manifestar-se fora a consciência, ela alegava ser a maior prejudicada, pois sempre que os vícios enveredavam o corpo de seu senhor pelos caminhos da degeneração era sob ela a quem recaia as pesadas culpas e de tanto suportar aquele peso esmagador estava estropiada. Após sua fala, levantou-se indignada a beleza e contestou a queixa da irmã, para ela maior prejudicada era sem sombra de dúvidas era ela mesma, uma vez que se via cada vez menos naquele corpo glutão, de feições tão prejudicadas pelas ações das famigeradas negligência e preguiça, aos gritos ela exigiu o corte imediato de ambas e fingiu um desmaio ao descer do púlpito. Socorrera-lhe a bondade com presteza, mas estava tão chupada que caiu fraca também, levaram-lhe um microfone no chão e com muito esforço sua voz rouca fez entender o quão vampirizada estava pelo rancor que crescia robusto e tóxico.
Depois, reclamou o amor dos venenos, das frustrações e mágoas, bem como as demais virtudes. A misericórdia, por sua vez, tentou argumentar sobre perdoar aos defeitos e tentarem elas as virtudes, viverem em harmonia com eles, a sabedoria endossou o discurso da irmã dizendo que a vida era composta essencialmente de dualidades, de sombras e luz, do bem e do mal, de virtudes e vícios. Porém, não adiantou muito e elas foram imobilizadas e silenciadas pelas outras qualidades.
Acertado o objetivo, sem deixarem aos vícios saberem da decisão, foram ao coração, o centro operacional do corpo e da alma, desdobraram fibra por fibra cardíaca e cortaram um por um, os fios que ligavam os vícios ao corpo. Ao terminarem, fecharam o órgão vital, constataram o batimento regular e por um momento nada parecia diferente. Tomaram os caminhos para o consciente e dali puderam vislumbrar o organismo agora liberto do mal.
Enquanto dormiam, o coração do corpo de seu mestre colapsou e o fez desabar inerte, sem vida aos pés da cama. A sabedoria olhou com tristeza a escuridão engolir consciente e inconsciente e falou para as irmãs despertando-as:
- Tolas, já dissera uma vez Clarice: "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro".