Entre peles e pelos

Abri a boca, sentindo o ar tocar minha língua. Joguei o quadril totalmente para o alto e para trás, de modo a deixar minha coluna vertebral esticada e arqueada, num formato aproximado de uma exponencial – ou talvez de um arco de parábola. Todos os meus ossos estalaram e aquela sensação característica de quem acaba de acordar e sente a vida voltar a correr pelas veias do corpo acabava de me dominar. As patas dianteiras esticaram-se por completo e chegaram a estremecer. Na verdade, meu corpo todo estremeceu, do rabo ao focinho. Mais um dia havia começado e, em meio a minha sonolência, parecia-se com outro qualquer.

Era difícil abrir os olhos e começar a caminhar, mas o cheiro da comida era muito mais convincente do que a velha malha que me servia de cama. Todos os dias, pela manhã, ele colocava os grãos cheios de cheiro e sabor, de modo que aquilo funcionava como algo revigorante, mesmo que momentaneamente, já que teria meus outros momentos de sonolência, e me entregar ao velho paninho seria sempre a única opção – exceto se o entregador de cartas passasse em frente ao nosso portão.

Não me lembro de alguma vez ter sonhado, mas penso que se sonhasse, seria com o momento que antecederia a alimentação: ele chegava e passava o polegar entre meus olhos, esfregando e indo para trás das orelhas. Minha reação era sempre a mesma: a força nas pernas se esvaia e deixava-me cair a seus pés. Ele, descalço, começava a afagar minha barriga. Não havia como resistir.

Ele sempre estava atrasado, sempre comendo um pedaço de pão seco e tomando seu copo de leite com o líquido escuro o qual nunca experimentei e cujo cheiro sempre achei inusitado. Aliás, era esse o cheiro que me fazia ter consciência de que o horário de acordar havia chegado e o ritual matinal teria início novamente. Com aquela sacola de alças agarradas por debaixo de suas axilas, montava em sua bicicleta e seguia em direção ao portão. Como sempre, eu o seguia, sem que nada estivesse amarrado em meu pescoço. O seguia porque éramos inseparáveis, porque acordávamos e íamos dormir sempre no mesmo horário, porque nele encontrava a confiança que doava da mesma maneira.

No caminho para o castelo – chamava assim, pois era imenso e cheio de súditos, os quais deveriam sempre reverenciar alguns poucos nobres que dificilmente encontravam-se fora de seus cubículos de alvenaria – percebi que ele não estava do mesmo modo que o via todos os dias. Desde que saímos do castelo, ontem, percebi certa angústia em seu olhar.

Lembro-me como se fosse hoje a noite que antecedeu o de ontem: ele colocou meu paninho ao seu lado, dentro da casa, e pude perceber que estava aflito, revirando pedaços brancos com riscos aleatórios, blocos e blocos já escritos e mais um bloco sendo desenvolvido naquelas horas que antecediam a manhã do ontem. Ele estava com um ar desesperado, como se quisesse devorar o mundo todo a partir de seus olhos. As mãos freneticamente revirando as folhas, páginas e páginas sendo devoradas e reproduzidas em seu próprio bloco. Ao que tudo indicava um dos senhores do castelo havia solicitado uma difícil missão, a qual ele não estava medindo esforços para cumprir. Tanto que minha barriga não foi afagada em nenhum momento – coisa difícil de ocorrer, visto que estava há pouco mais de dez centímetros de seus pés.

Ele sempre foi dedicado, sempre empenhado em fazer com que tudo ocorresse da melhor maneira possível. Todos os resultados a que chegava eram por meio de seu esforço próprio, tudo foi alcançado com muita energia – sei disso, porque em várias noites fui eu mesmo quem encostou a porta da cozinha para que a casa parecesse fechada. Já ele, dormia por sobre a mesa da cozinha – mesmo ambiente em que nos encontrávamos na noite em questão.

Dessa vez ele não dormiu. Sei disso porque a cada vez que era atacado por minha sonolência característica abria um dos olhos, arqueava uma das sobrancelhas e verificava a sua situação: e em todas às vezes, lá estava ele, sentado, revirando, rabiscando, bocejando, tomando o líquido preto, reproduzindo e deixando-se reproduzir nas folhas brancas. O dia que viria certamente seria de muito trabalho, caso contrário estaria já deitado em sua cama confortável e me colocado para fora, em meu lugarzinho de dormir.

Tomou sua sacola cheia de papeis, acomodou-a nas costas, tomou a bicicleta e saiu correndo para o castelo. Eu fui atrás, como sempre. No cubículo de alvenaria, o quadro verde estava totalmente sem rabiscos, dos quais nunca compreendi coisa alguma. O nobre se encontrava sentado em seu trono por detrás da mesa, observando a todos suarem frio, súditos obedientes empunhando seus instrumentos de rabiscar. A tensão estava presente no ar, sentia a tudo e a todos como a humidade impregnada em meu focinho frio. Todos naquela sala, exceto o nobre, estavam apavorados e tentavam, a todo o custo, rabiscar o que traziam em seus interiores, numa tentativa de acabar com aquele suplício o mais rápido possível. Já o nobre, ficava olhando para lá e para cá, como um farol a iluminar uma baía deserta. A luz se apagou, voltamos para nosso lar, mas sabia que algo havia acontecido.

E lá estávamos nós, nos portais do castelo, prestes a adentrá-lo. Senti que ele parou rapidamente, deu um forte suspiro, olhou para mim como se quisesse dizer: “vamos ver o que nos espera, fiel amigo”, e seguiu a amarrar seu transporte. Seguimos, ele à frente e eu logo atrás. Entrou na sala, sentou-se, e passou a compor aquela massa formada por cerca de três dezenas de súditos totalmente apreensivos à espera de algo que não compreendia muito bem o que era.

O nobre adentrou o recinto e seu semblante estava mais soberano do que o habitual. Ele carregava um pacote em suas mãos, de cor parda. Percebi que ele o apertava com toda a sua força, de modo que chegava a amassar o que quer que fosse que lá dentro estivesse. Ele parou à porta, ao lado do cesto utilizado para descartar aquilo que julgavam sem utilidade ou valor. Pisou no pedal, a tampa subiu. Ainda parado, levantou o pacote pardo na altura dos ombros e, olhando para baixo, disse:

— Nunca vi tamanha atrocidade no tempo em que estive à frente dessas turmas. Vocês conseguiram fazer o que ninguém jamais conseguiu – por mais que nos anos anteriores a decepção tenha sito grande, é nesta turma que ela chegou ao seu ápice: dez por cento de todos vocês conseguiram atingir a numeração acima da metade, e metade de vocês obtiveram o menor conceito possível. Isso é vergonhoso, é deplorável, é lamentável e inconcebível. Estão vendo isso que carrego em minhas mãos, caros senhores e senhoras? É todo o lixo que vocês produziram no dia de ontem. E o lixo à lixeira deve retornar!

Num movimento suave, apenas afastou o polegar dos outros quatro dedos de sua pata destra, de modo que o pacote caiu perpendicular ao solo no interior do receptáculo aberto. No mesmo instante senti a energia que emanava de todos ali: era algo pesado. Muitos abaixaram a cabeça, outros ficaram olhando como se algo estivesse por detrás do quadro verde e alguns ficaram com seus rostos interrogativos, como se tivessem acabado de escutar latidos aleatórios e sem sentido. Ele permaneceu com o olhar nos olhos do nobre. Nada disse.

Em meio ao total silêncio, o nobre dirigiu-se a seu trono. Com toda a calma sentou-se, olhou o entorno e fixou o olhar em mim, que me encontrava no mesmo lugar de sempre: ao lado de meu companheiro inseparável, deitado, totalmente quieto, observando.

— A todos que obtiveram conceito menor que uma unidade e meia digo que devem desistir imediatamente de comparecerem a esse recinto; devem ficar em suas casas e achar o que fazer. Esse número já é suficientemente ridículo e obter um de menor valor é algo que transcende toda a tentativa de ser incapaz. A estes, novamente, sugiro que fiquem em seus lares e não venham atrapalhar aqueles que querem chegar lá. Digo sem sombra de dúvidas – se não estivesse tão cansado poderia demonstrar no quadro toda a incompetência de vocês – que aquele quadrúpede ali deitado é muito mais inteligente do que todos vocês juntos.